Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Time cede porque o negócio da Warner é outro

Uma história sórdida, como tantas outras menos conhecidas da era Bush, levou a revista noticiosa Time, a maior do mundo (4,1 milhões de exemplares), carro-chefe do conglomerado de mídia (24 publicações) e entretenimento TimeWarner, a uma capitulação sem precedentes na história da grande imprensa americana.


Em julho de 2003, pouco depois de o ex-diplomata Joseph C. Wilson IV publicar no New York Times um artigo com duras e bem-informadas críticas sobre o principal pretexto fabricado pelo governo Bush para invadir o Iraque – o suposto programa atômico de Saddam Hussein –, o veterano colunista de direita Robert Novak escreveu que ‘dois altos funcionários da administração’ lhe disseram que a mulher de Wilson, Valerie Plame, trabalhava para a CIA no setor de armas de destruição em massa.


O vazamento, sem sombra de dúvida, foi uma brutal represália da Casa Branca ao artigo que desmascarava Bush. Foi também um crime federal, como nos Estados Unidos se considera a revelação do nome dos agentes de seus serviços de espionagem – sem falar no destino fácil de imaginar que tiveram as pessoas com as quais Valerie se relacionava socialmente em outros países e que trabalhavam para ela em segredo.


Levou meio ano até que o procurador especial Patrick J. Fitzgerald começasse a apurar o caso. Àquela altura, o repórter Matthew Cooper, da Time, já tinha escrito uma matéria a respeito, citando fontes anônimas. Também a repórter Judith Miller, do New York Times, se pôs a investigar a história do vazamento, mas nada publicou.


Vem daí a batalha judicial para obrigar Matthew e Judith a entregarem as suas fontes, sob pena de até 120 dias de prisão para ambos e multa diária mínima de 1 mil dólares para a revista e o jornal, conforme decisão de um juiz distrital federal de Washington. Mas não se sabe se Novak, o dedo-duro a serviço da tropa de choque de Bush, foi ao menos ouvido pelo procurador. Nem um nem outro abrem a boca.


Na segunda-feira (27/6), a Suprema Corte dos Estados Unidos se recusou a examinar as petições dos dois repórteres para garantir o direito ao sigilo de fontes jornalísticas, invocando a Primeira Emenda à Constituição dos EUA que assegura a liberdade de expressão.


Dois dias depois, o editor-chefe da Time, Norman Pearlstine anunciou – contra a vontade de Matthew – que entregará as suas anotações à Justiça. Com isso ele poderia ser dispensado de depôr – e a revista ficaria livre de pagar a multa estipulada até que ele abrisse os nomes de seus entrevistados. O New York Times manteve a posição de apoiar o silêncio de sua repórter.


Atropelado pelo número 1 da revista, Matthew disse: ‘Durante quase dois anos protegi minhas fontes confidenciais mesmo sob ameaça de prisão. Portanto, embora entenda a decisão da Time de passar adiante os papéis que identificam minhas fontes, estou obviamente decepcionado com o que escolheram fazer’.


‘Fazer o que a consciência manda’


Em 1978, o repórter M. A. Farber, do mesmo NYT, pegou 40 dias por se recusar a entregar as suas notas em um caso que envolvia um médico acusado de envenenar pacientes. O jornal pagou ao todo 286 mil dólares em multas, em dinheiro da época. Em 1982, Farber foi perdoado e o jornal recebeu de volta 101 mil dólares.


‘Você tem que fazer o que acha certo, o que a sua consciência manda, o que é da tradição do ofício e esperar que as autoridades reconheçam que merecemos alguma proteção’, comentou Farber, depois da rendição da revista.


Mas isso e nada deve ser o mesmo para Pearlstine, da Time, que justificou o seu ato como obediência às leis e à Justiça – esquecido, talvez, de que decisões judiciais extremamente controvertidas como nesse caso podem, sim, ser descumpridas em nome de valores incontroversos – na pátria da liberdade de imprensa – desde que os descumpridores aceitem o castigo previsto.


Quantos americanos íntegros não foram para a cadeia no tempo do macartismo, nos anos 1950, por se recusarem a ‘name names‘, dedurar simpatizantes ou militantes do Partido Comunista?


Pearlstine, que afirma ter tomado a sua decisão sem consultar nenhum executivo da empresa – então, tá, como se diz por aqui – tampouco se incomodou com a perspectiva de entrar para a história como o responsável por uma atitude inédita, porque demasiado vergonhosa, na crônica do moderno jornalismo americano.


Não há registro de uma grande organização jornalística que tenha concordado em revelar a identidade de quem tenha falado ‘em off‘ com algum de seus repórteres. E não há porque até o mais verde dos focas sabe que, sem o respeito absoluto à confidencialidade pedida e obtida, o noticiário da imprensa terá a credibilidade dos press releases de um grupo lobista e a contundência dos lobotomizados. Para a direita no poder e os barões da mídia concentrada que impõe a metamorfose da informação em infotenimento, tudo bem.


A Time é ‘parte de um complexo de entretenimento, onde parte do jornalismo é cada vez menor’, avalia David Halberstam, autor, em 1979, do monumental The powers that be, um estudo até hoje inigualado dos gigantes da mídia americana. ‘Há uma grande dúvida ali: trata-se de uma empresa jornalística ou de uma companhia de entretenimento.’


‘Por causa do dinheiro’


A Time Inc. não é mais aquela empresa que foi até a Suprema Corte para defender, com êxito, o autor de uma matéria da Life acusada de invasão de privacidade. Nem aquela que na década de 1990 passou anos e gastou os tubos em defesa de um repórter da Time cuja matéria, que acusava a Igreja de Cientologia de encarnar ‘o culto da cobiça’, foi considerada caluniosa.


‘Parece que fizeram isso por causa do dinheiro’, avalia a professora Jane Kirtley, que leciona ética jornalística e direito na Universidade de Minnesota, citada pelo New York Times. ‘É acabrunhante que a TimeWarner não tenha cerrado fileiras em torno da jóia da coroa de seu império.’


Mesmo do ângulo do business da comunicação, há quem ache que a Time errou. Um advogado especialista em defender repórteres, James C. Goodale, argumenta que as empresas têm obrigação de preservar a todo custo as anotações jornalísticas como um patrimônio corporativo.


Para ele, a obrigação é incondicional. Deriva da Primeira Emenda à Constituição e ‘é do interesse dos acionistas proteger esse patrimônio’.


O respeitado professor de ética jornalística da Universidade Washington e Lee, Edward Wasserman, classificou a decisão da Time como ‘um desastre’ para a mídia. ‘E tudo isso para quê?’, perguntou, falando ao Washington Post. ‘Para dar suporte ao princípio de que os políticos sem caráter que usaram um colunista dócil para atacar o autor de uma denúncia e destruir a carreira de sua mulher merecem ter as suas identidades encobertas.’


Nas redações americanas não há quem duvide que um desses sem-caráter é o conselheiro presidencial da pesada Karl Rove, membro do triunvirato que governa a América, ao lado de Bush e do vice Dick Cheney. E não falta quem diga que a respeitada juíza Sandra Day O’Connor se aposentou da Suprema Corte na sexta-feira passada de desgosto com a decisão de seus pares de não examinar o recurso dos jornalistas Matthew Cooper e Judith Miller.


[Texto fechado às 20h30 de 4/7]