Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tiros na informação

O governo de Israel e o Hamas tentam capturar corações e mentes proibindo o ingresso de jornalistas na frente de batalha, selecionando notícias favoráveis e divulgando apenas o que interessa a cada um dos lados envolvidos no conflito, que começou dia 27 do mês passado.

A Faixa de Gaza está no centro de duas guerras concomitantes. A primeira, mais óbvia, envolve tanques, mísseis e soldados. A segunda, de contornos brumosos, é travada com palavras e imagens – e está servindo para impedir que se vislumbre a outra com nitidez. Em grau extremo, as forças de Israel e do Hamas assumiram como parte privilegiada do seu esforço bélico combater pelo controle das informações que chegam ao público. O símbolo dessa ofensiva pelas mentes dos consumidores de notícias foi a inesperada proibição, por parte de Israel, da entrada de jornalistas na zona de conflito, contrariando decisão da Suprema Corte do país. Os profissionais da imprensa foram trocados por boletins distribuídos pelo Exército. Do outro lado, o Hamas mantêm vigilância sobre textos e fotos que saem da Faixa de Gaza para o mundo.

Não é que falte informação. Na verdade, ela está em todas as partes e se imiscui por novos formatos. Blogues escritos por testemunhas oculares, correntes de e-mail com relatos à quente e vídeos feitos no celular para serem postados instantes depois no You Tube somaram-se ao noticiário tradicional. O problema é que, no meio do burburinho sem filtro nenhum ou filtrado demais pelas estratégias de intervenção estética dos dois lados, tornou-se um desafio enxergar através da nuvem de fumaça das versões e ver a guerra real. O resultado é pura desinformação. Sem instrumentos para eleger quais narrativas são confiáveis, o público se vê ameaçado pela armadilha de comprar propaganda disfarçada de jornalismo. Na segunda guerra, a da comunicação, todos viraram vítimas.

Sob vigilância e tutela

Restava às centenas de jornalistas do mundo todo enviados à região permanecer nas bordas de Gaza e tentar não se perder na floresta de dados contraditórios. O fogo cruzado de informações e o bloqueio aos dados de primeira mão desnortearam profissionais tarimbados, a ponto de um veículo de peso como a rede de TV norte-americana CBS colocar no ar uma reportagem, produzida pelo correspondente em Israel, sobre o fato de ser impossível fazer uma reportagem. A CNN não ficou atrás, em uma espécie de editorial:

– Não temos repórteres em campo, porque o governo de Israel não permite que jornalistas estrangeiros entrem. A maioria das informações que vêm de Gaza são impossíveis de verificar, e grande parte das imagens que você vê na televisão vêm do Hamas – esclareceu a jornalista Campbell Brown ao público da rede.

A ambição de controlar as narrativas sobre a guerra e, dessa forma, dar aparência de justiça e obter aprovação para um dos lados é quase tão antiga quanto a própria guerra – e já rendeu até alguns clássicos da literatura. Na nossa era, a percepção de que a comunicação dos fatos pode ser tão importante quanto os fatos em si levou os Exércitos a lançarem um olhar científico sobre o assunto.

– A opinião pública é muito importante em uma guerra, porque a reputação de uma nação está em jogo. Conflitos militares envolvem as emoções de milhares de pessoas, o que se dá pelas imagens que estão nas nossas cabeças. Temos então uma guerra psicológica, de informação, de nervos. Depois do Vietnã, houve uma análise profunda pelos exércitos do papel que o jornalista presente no campo de batalha exerce. A partir de então, o acesso sempre foi limitado. O esforço da imprensa passou a ser o de furar esse bloqueio – analisa o doutor em comunicação e analista político Jacques Wainberg, professor da Faculdade de Comunicação Social da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS).

O professor enumera algumas das estratégias experimentadas nas últimas décadas pelos governos em armas para pôr bitolas nas informações que chegam ao público. Por um período, predominou a técnica do pool: um pequeno número de representantes da mídia é selecionado para acompanhar certas operações militares, sob a vigilância e a tutela de um oficial de informações. Esse modelo, que mantém o jornalista dentro de limites considerados aceitáveis, foi usado na primeira Guerra do Golfo, no começo dos anos 1990.

Manipulação e controle dos passos dos jornalistas

Em 2003, quando os norte-americanos retornaram ao Iraque para derrubar Saddam Hussein, a técnica preferida já era outra, com ar retrô: recuperava a prática da Segunda Guerra Mundial de incorporar o repórter às tropas de seu próprio país, de forma a gerar uma identificação que se traduzia nos despachos pela transformação do soldado em herói. Como consequência, o número de jornalistas autorizados se multiplicou por 10 em comparação com a primeira Guerra do Golfo.

A redução das permissões para zero no presente conflito de Gaza, invertendo a lógica anterior, pode não ser episódica, acredita Wainberg. Ele a interpreta como um novo estágio na doutrina militar sobre que espaço conceder à imprensa.

– Trata-se de um novo entendimento. É provável que o acesso aos locais de batalha seja limitado cada vez mais daqui para a frente. Trata-se de um cálculo de custo-benefício. Na minha leitura, concluiu-se que ter um repórter durante o desenrolar da batalha atrapalha – diz.

Para a jornalista Paula Fontenelle, trata-se de uma estratégia pouco inteligente. Paula é autora do livro Iraque: A Guerra Pelas Mentes (Editora Sapienza), para o qual entrevistou 18 correspondentes e quatro coordenadores de mídia do Ministério da Defesa Britânico. Ela conclui que na guerra de 2003 havia manipulação e controle sobre onde o jornalista podia ir, mas que nada se equipara ao atual bloqueio estabelecido na Faixa de Gaza.

– Nem se compara com o Iraque, que tinha 700 jornalistas atuando e, conforme a pesquisa que fiz, sem censura direta. Agora há uma tentativa de controle absoluto da informação. A estratégia de Israel é equivocada porque todas as informações e imagens que recebemos estão sendo produzidas por palestinos. Acreditar que não existe interferência no trabalho deles é ilusão. O Hamas exerce vigilância sobre os jornalistas também. O resultado é que não temos informação correta – observa Paula.

Na investigação para o livro, a jornalista obteve a confirmação de que o formato estabelecido pelos governos para o acesso da imprensa à zona de guerra obedeceu ao desejo de controle da informação. Em entrevista a Paula, David Howard, coordenador-geral da operação de mídia do Ministério de Defesa britânico, foi direto sobre a decisão dos aliados de investir nos chamados ‘enlistados’ – jornalistas que são embutidos em uma determinada unidade do Exército:

– O motivo que nos fez adotar o sistema é porque acreditamos que rende reportagens positivas. Elas foram muito positivas. Queríamos uma cobertura favorável e sabíamos que dessa forma conseguiríamos. Sabíamos porque sempre conseguimos.

Os correspondentes de guerra confirmaram que a isenção fica prejudicada. Um dos relatos reveladores colhidos por Paula é do jornalista Ben Brown, da BBC. Ele contou à brasileira sobre o dia em que, durante um combate, viu um soldado da unidade britânica à qual estava incorporado apontar a arma para ele e atirar. Só entendeu o que havia ocorrido ao olhar para trás e perceber que o militar tinha alvejado um iraquiano que estava prestes a matá-lo. A reação de Brown foi abraçar o soldado que salvou sua vida. Ele admitiu a Paula que, depois de uma situação como essa, é impossível ser isento na cobertura.

– O enlistamento é usado porque, segundo as pesquisas feitas pelos militares, gera uma relação de cumplicidade do jornalista com o soldado. Eles dormem e acordam juntos. A cada dia vai ficando mais difícil falar mal do exército – explica Paula.

Porta-vozes bem treinados, vídeos e boletins

Na falta de jornalistas ou com jornalistas sob controle, restam a retórica e as estratégias de relações-públicas dos lados em conflito. O veto por Israel da presença de imprensa (atacado pela Associação de Imprensa Estrangeira como uma ‘proibição sem precedentes’ e uma ‘grave violação da liberdade’) foi acompanhado do investimento pesado em um trabalho profissional de comunicação. A ação israelense inclui porta-vozes bem treinados e boletins em abundância, o que garantiu uma aprovação de 96% da população à guerra. Algumas características da estratégia:

** A retórica do governo lembra ataques passados do Hamas a civis de Israel e insiste na atual ofensiva como um último recurso de defesa diante de um inimigo que ameaça a segurança do país e que não deixou outra opção.

** Fazendo o uso intenso de novas tecnologias, as forças armadas israelenses postaram uma infinidade de vídeos favoráveis à sua causa no You Tube. Neles, chamam a atenção para o fato de que os palestinos instalaram bases de artilharia junto a áreas repletas de civis, como escolas, colocando a população em risco.

** Para os israelenses, dar ênfase aos mais de mil palestinos mortos é tomar partido do outro lado.

** Como forma de evitar o vazamento de notícias e imagens, o exército confiscou todos os celulares dos soldados enviados à Faixa de Gaza

Do outro lado, também não há ingenuidade no uso das ferramentas de comunicação. Em 2007, o Hamas impôs severas limitações ao trabalho de jornalistas, proibindo a divulgação de informações que supostamente causem prejuízo à unidade nacional ou incitem ódio e dissidência religiosa. Em sua estratégia, o grupo faz caminho oposto ao de Israel:

** Cinegrafistas e fotógrafos são posicionados junto a hospitais. A intenção é privilegiar ao máximo a exibição do sofrimento e da morte dos civis atingidos, forma de provocar ira contra os israelenses.

** Há manipulação de imagens enviadas da Faixa de Gaza ao mundo. Em artigo publicado na semana passada sobre o fogo cruzado de informações em que o The New York Times se viu envolvido (ver aqui), o editor público do jornal, Clark Hoyt, revelou que muitas das fotos que chegam à redação foram claramente montadas

** Não se enxergam soldados do grupo. É como se eles simplesmente não existissem. Como resultado, a imagem que a opinião pública têm dos palestinos é só o das vítimas agredidas.

O professor do curso de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul Paulo Vizentini vê na manipulação das ferramentas de comunicação pelo Hamas uma novidade do presente embate pelos corações e mentes:

– Um grupo primitivo como o Hamas já tem certo trato com a questão e conta com porta-vozes articulados, que falam bom inglês. A estratégia do grupo é se mostrar como um legítimo governo palestino que resiste a uma agressão, o que é motivado por disputas internas.

Situação extrema

No vácuo resultante da falta de jornalistas profissionais enviando informações do fronte e da desconfiança em relação à manipulação dos fatos pelos dois lados, emerge com importância inédita um novo personagem: o cidadão que, do local do conflito, abastece o mundo de imagens e textos . A internet está repleta desses testemunhos, principalmente de palestinos que relatam a perda de amigos nos bombardeios e que falam de mortes, de sangue e corpos desmembrados. Segundo Vizentini, é um contraste flagrante com o cenário da primeira Guerra do Golfo. Naquela ocasião, o mundo se surpreendeu ao assistir ao ataque norte-americano em tempo real no televisor, no sofá de casa. Era uma guerra asséptica, que flagrava mísseis ao longe, supostamente atingindo alvos escolhidos cirurgicamente, sem sangue e sem vítimas.

– Foi um recurso político para mostrar a superioridade esmagadora de uma potência e enfatizar que não convinha desafiar a nova ordem que surgia depois da Guerra Fria. As imagens eram controladas. Agora é completamente diferente. A guerra se individualizou. Uma pessoa com um celular consegue tirar fotos ou filmar e expandir isso enormemente na internet. O problema é que essa imagem pode ser editada e tirada de contexto para criar fatos políticos. Por isso, não permitir a presença de um jornalismo profissional pode ser um tiro no pé. Essa informação alternativa vem de qualquer jeito – aponta Vizentini.

A interferência dos governos em guerra para controlar a informação que vai a público amplifica um dilema que, sem essa intervenção, já seria suficientemente complicado. Trata-se da discussão sobre até que ponto é possível alguém manter a imparcialidade. Diante de uma guerra, não é natural que cada indivíduo se pergunte com quem está a razão e tome um partido? Um jornalista consegue escapar disso? Profissionais da área e analistas acham que é difícil.

– Não tem como separar o jornalista do ser humano em uma situação extrema como a guerra. É difícil ter um enfoque isento. Ele sempre vai ouvir mais um lado do que o outro, dependendo de onde estiver – acredita Paula Fontenelle.

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Repórter do Zero Hora, Porto Alegre, RS