O que é pecado, quem é pecador? Esta é a questão central que, ao longo dos séculos, movimenta o espírito humano, aciona angústias, fabrica as religiões, filosofias e ideologias.
O painel de climatologistas & afins reunidos sob a égide da ONU em Paris proferiu uma sentença que vai além das catastróficas previsões ambientais: com 90% de probabilidade, a humanidade é a grande culpada pelo apocalipse anunciado. A questão transcende ao aquecimento global, é moral – em crimes de proporções cósmicas, todos são bandidos. Full time ou part-time.
O Pólo Norte vai desaparecer, o mar vai subir, ondas de calor e enchentes vão aumentar. A culpa não é só do megavilão George W. Bush Jr., que se recusou a assinar o Protocolo de Kyoto, a culpa não é apenas de Ahmadinejad, Chávez e da camarilha dos petrodéspotas preocupados apenas em oferecer emissões de dióxido de carbono a preços acessíveis. A culpa é da Rússia, da China, dos pastores de cabras e criadores de zebus, dos desmatadores da Amazônia e destruidores das encostas, a culpa é dos emergentes e submergentes.
A proximidade da reprise do Dilúvio deixou claro que ninguém é inocente, inclusive os inimputáveis. Em Paris, talvez por inspiração cartesiana, acabam de ser estabelecidas as bases para a socialização do pecado e a mundialização da culpa, corolário da globalização, herdeiras da circunavegação de Fernão de Magalhães e da aventura de juntar os oceanos através do mar de lama que resultou no canal do Panamá.
Estamos todos no mesmo barco, ninguém é uma ilha, os sinos dobram a cada segundo por algo ou alguém que erra ou desaparece. [Sobre o artigo ‘Todos são culpados‘, Último Segundo, 2/2/2007]
A mídia também está no banco dos réus, ocupa posição privilegiada no esquema de culpas concêntricas que provocou o aquecimento do planeta. Seus alertas foram débeis – pífios é a palavra apropriada – seus apelos e convocações foram burocráticos e seu compromisso educativo vem sendo progressivamente pisoteado ao longo das duas últimas décadas. Justamente quando a degradação ambiental chegou ao paroxismo.
A própria mídia está sendo palco de um confronto entre puristas (que apostam no conteúdo e nos seus compromissos originais) e os eufóricos (fascinados com avanços tecnológicos e seus desdobramentos mercadológicos). Este confronto é na realidade a reprodução em pequeno formato do grande confronto entre ambientalistas e desenvolvimentistas.
Pressionada pelas maravilhosas invenções e as respectivas mudanças que acarretam, perdida no tumulto da velocidade, a mídia não consegue se encontrar. Não sabe a que veio. Segue as ondas, modas, senhas e, principalmente, a agenda imposta por interesses alheios aos seus. Agora vai encarar uma realidade que sempre disfarçou com os seus truques otimistas.
Previsão do tempo
Quantos comentaristas políticos pontificam nas páginas de jornais e revistas e em que página são publicadas suas transcendentais especulações? Nosso elenco de observadores da cena política é imenso, formidável em matéria de competência, bem pago, e aparece nas melhores vitrines da nossa mídia. Nada contra: são craques, responsáveis, e o público precisa ser permanentemente esclarecido diante da volatilidade política. Quase o mesmo acontece com os analistas de economia e negócios (sobretudo depois que a grande mídia decidiu transformar o brasileiro num ‘empreendedor’).
E quantos especialistas em meio ambiente temos na grande mídia? Onde são publicadas as suas preocupações, suas advertências e qual a periodicidade? Não há termo de comparação e, no entanto, o mundo está seriamente ameaçado por riscos meteorológicos e socioeconômicos dificilmente reversíveis causados pelas agressões à natureza – e, não, pelas agressões políticas ou ideológicas.
Quantos Washington Novaes temos na grande imprensa? Apenas o próprio, decano do jornalismo ambiental, que escreve uma vez por semana (sextas-feiras) na página 2 do Estado de S.Paulo. Há outros, claro, igualmente competentes, experientes, idealistas.
Não basta. O ambientalismo deve infiltrar-se nos aquários onde se processam as decisões editoriais, nas redomas dos editorialistas e também nos gabinetes onde são tomadas as decisões de mercado capazes de mudar a essência do processo jornalístico. A defesa da Natureza compreende uma percepção ampla sobre a natureza das coisas, dos sistemas e da humanidade.
A Rede Globo só há pouco conseguiu valorizar a previsão do tempo do Jornal Nacional, libertando-a da gangorra das máximas (no Norte-Nordeste) e das mínimas (no Sul-Sudeste). Compreender o clima é muito mais do que estender a mão além da vidraça para saber se será necessário sair com o guarda-chuva.
Combustíveis e alimentos
Nossa mídia precisar esverdear ou, pelo menos, abrandar as cores da sua palheta. Dispensam-se as batas, batique, chinelos de couro cru, não é necessário trocar o look Hugo Boss pelo jeito hiponga. Basta a abrir-se à percepção ecológica. Antes de tudo, é preciso entender o significado da palavra ecologia, ciência que estuda a relação entre o homem e o meio ambiente. Depois disso, o resto é fácil.
A ecologia é uma ciência que não cabe numa editoria. Confiná-la a uma página num determinado dia pode ajudar, mas é insuficiente porque a ecologia está exigindo reflexões e desdobramentos em todas as áreas do conhecimento.
Na ânsia de aquecer o noticiário, nossa mídia deixou de lado o aquecimento global. Só acordou agora com a catástrofe anunciada.
Preferiu a rotina, o chove-não-molha, abriu mão da sua capacidade de provocar questionamentos e insatisfações, perdeu o interesse pelas opções mais difíceis, porém mais corretas.Há cerca de dois meses, quando começou a discussão sobre a necessidade de acelerar o crescimento econômico, a mídia preferiu embarcar no falso dilema entre o desenvolvimentismo (representado pela ministra Dilma Rousseff) e o ambientalismo (representado pela ministra Marina Silva). Forçou um confronto que só existe na cabeça dos simplistas. Com raras exceções, optou pelo crescimento acelerado sem preocupar-se com a sua sustentação.
Auto-engana-se com a miragem dos biocombustíveis e nem sequer acompanha devidamente o que está acontecendo no México, onde a repentina valorização do preço do milho para produzir etanol nos EUA tirou a tortilla da mesa dos mexicanos pobres que fazem dela o seu prato de resistência.
Os agrocombustíveis serão sempre mais atraentes em matéria ambiental do que os combustíveis fósseis, mas é preciso lembrar que quanto mais terra for destinada a movimentar a frota de veículos menos terra sobrará para produzir alimentos.
Ímpeto arrefecido
A mídia não está preocupada com tais sutilezas, suas opções são elementares, ela gosta do básico. Descobriu Adam Smith com 200 anos de atraso e está felicíssima com a façanha. Nem os habituais denunciadores dos ‘complôs da mídia’ perceberam que a mídia está perdendo o bonde da história e que eles viajam no reboque. Engajados no mesmo delírio do crescimento preconizado por uma parte do governo não se interessam por traumas, choques ou emergências. Precisam de culpados, desde que não seja o petróleo dos caudilhos amigos.
Viciada em anabolizantes, a mídia ficou chocada com a proximidade do apocalipse preconizada pelo painel da ONU. Rádios e telejornais na sexta e jornais de sábado pareceram frenéticos. No domingo, sossegaram: muitos veículos preferiram ir à praia. Nesta segunda-feira (5/2), apenas a Folha de S.Paulo considerou o anúncio da catástrofe iminente merecedor de destaque na primeira página pelo terceiro dia consecutivo.
Assim caminha a humanidade.