‘(…) Ela tirou primeiro o avental branco. Depois o sapato, a calça e a calcinha. Pediu a David que deixasse ela [sic] ficar de blusa – ‘porque tinha amamentado meus três filhos’, hoje com 8, 9 e 12 anos, e também porque ‘queria poder olhar meu corpo de novo quando tudo aquilo terminasse’.'[Nota técnica destinada mais a quebrar o clima de Carlos Zéfiro do que a sustentar um preceito de bom uso do vernáculo: a mudança de sujeito de duas orações seguidas é, como escreveu Napoleão Mendes de Almeida, ‘uma das causas da falta de clareza de exposição do pensamento’.]
‘No dia em que D.C.T. foi estuprada, ela [trata-se da mesma terceira pessoa, D.C.T., ou de outra?; a introdução ‘No dia em que D.C.T. foi estuprada´, que é uma reiteração usada com finalidade estilística ao longo do texto inteiro, sem que se diga, por sinal, em que dia o fato aconteceu, a introdução parece ter sido encaixada para quebrar uma seqüência que de outro modo seria absolutamente erotizada] deitou-se no colchonete. Sob a ameaça de uma faca, recebeu sexo oral. Depois David deitou [sic] sobre ela . Continuou segurando a faca enquanto penetrava [sic] devagar. D.C.T. não chorou. De tempos em tempos, enquanto a estuprava, ele voltava ao assunto: – Mas a senhora não está fazendo nada que não quer, né? Não estou a fim de me ferrar na Justiça…
‘D.C.T. dissimulava, balançava a cabeça, respondia o que seu algoz desejava escutar. Pedia que ele fosse logo, ‘porque é perigoso entrar alguém’. David chegou ao orgasmo, sem camisinha e sem interromper o coito. Nesse momento, o líder entrou no quarto. Propôs ‘compartilhar a senhora’.
‘D.C.T. permaneceu deitada. O líder a estuprou, embora avisasse que não iria ‘zoar muito porque a senhora é crente’. [Vide nota técnica acima.] – Eu estou tão cansada, por que vocês estão fazendo isso comigo? – Porque a gente gosta de mulher séria – respondeu o líder. (….)’.
O trecho acima foi deliberadamente pinçado de reportagem publicada no Estado de S.Paulo de domingo (20/3), caderno ‘Aliás’, sobre violências contra funcionárias durante rebelião ocorrida no dia 11 de março na Febem de Franco da Rocha, São Paulo.
Em 24 de março, o Estadão publicou duas cartas de leitores.
O primeiro missivista, ultrajado, fulminou:
‘(…) A quem aproveitam os detalhes minuciosos de um estupro, afora a uma imprensa sensacionalista? Fica a vaga impressão de que, afinal, não é uma coisa tão grave assim… Os meninos estavam carentes sexualmente, o ambiente era limpo e cheiroso, explicaram isso piedosamente à funcionária. Esta, por sua vez, premida pelas circunstâncias, acedeu resignadamente aos rigores de várias violentações. Mas, sim, tudo num tom descritivo em que os pobres internos foram mais compreendidos pela reportagem do que o ato em si e suas conseqüências.(…)’.
O segundo, entusiasmado, elogiou:
‘Terrível o depoimento, brilhante a matéria sobre a pedagoga que foi estuprada por três menores/animais na Febem de Franco da Rocha, demonstrando, mais uma vez – isto todos já sabem, mas não custa repetir –, a falência e a incompetência dos responsáveis pelo sistema, governador, secretário da Justiça e outros mais, que deveriam renunciar a esta atividade, repassando-a a quem pudesse efetivamente corrigi-la. (…)’.
Tom inapropriado
O primeiro missivista está certo, ainda que sua crítica, lúcida, não seja inteiramente precisa. O problema da reportagem não é conter ‘os detalhes minuciosos de um estupro’ (isso seria abjeto, mas o texto não tem tal minúcia), e sim:
**
extrair do relato da entrevistada uma suposta reconstituição da lógica de seus agressores, o que é uma opção jornalística manipulatória;**
adotar tom sensual ao descrever o sexo forçado;**
apresentar uma imagem de vítima resignada que alimenta o preconceito contra mulheres violentadas e, assim, involuntariamente atenua a condenação moral dos autores do crime que denuncia (aqui não importa saber ‘a verdade’, isto é, se a vítima resignou-se ou não);**
manifestar racismo (algo que escapou ao leitor). Eis mais dois trechos pinçados:‘Os internos eram comandados por um adolescente de 16 anos, negro e forte, líder da unidade mesmo em dias normais.’
‘‘O que é que vocês vão fazer comigo?’– perguntou A.M.A. ao encontrar o líder negro e forte dentro do quarto.’
O segundo leitor só está certo quanto à incompetência das autoridades (cabe dizer: nas últimas quatro décadas). No mais, está errado, e duplamente: ao avaliar a reportagem e ao classificar os internos. Ou somos todos animais, nós, eu e você, leitor, ele, missivista, e os menores – os biólogos dizem que o somos –; ou somos todos humanos – dizem-no filósofos –, embora uns nos pretendamos mais humanos do que outros.
Do SAM à Febem
Na década de 1960, até 1968, quando morreu, o catedrático de Clarins e Cornetins da Escola Nacional de Música da UFRJ foi o trompetista e professor de trompete Valdomiro Alves.
Nascido em 1911, ele havia sido, na segunda década do século, interno do SAM (Serviço de Assistência ao Menor), antecessor da Febem, no Rio de Janeiro, e lá aprendera a tocar todos os instrumentos de sopro de uma banda de música.
Preferiu o trompete. Na Escola de Música, foi aluno Medalha de Ouro, o que significa que tirou as notas máximas em todas as disciplinas durante os cinco anos de curso.
Embora o submundo criminoso do Rio de Janeiro seja muito antigo, e sempre tenha dispensado qualquer exigência de idade mínima para ingresso, nessa época os problemas de menores abandonados, órfãos (caso de Valdomiro Alves) e infratores eram outros. A maior parte da rede de atendimento, como acontece até hoje, não era estatal, e a intervenção governamental, bem menos catastrófica. Roberto da Silva, ex-interno da Febem, doutor em Educação pela USP, explicou isso no livro Os Filhos do Governo e em entrevistas.
Cobertura ruim, sob censura e após
A Política Nacional do Bem-Estar do Menor, da qual emanaram a Funabem, as Febens e instituições congêneres, foi estabelecida por lei (nº 4.153) em dezembro de 1964, sob a ditadura militar nascente. Como se sabe, a cobertura jornalística do tema é deficiente desde então.
A censura prévia, entre dezembro de 1968 e janeiro de 1975 (o fim da censura à imprensa seria formalizado em 1978), eximiria a grande imprensa dessa responsabilidade específica (embora ela não possa ser isentada da convivência com o regime ditatorial): hipótese fraquinha, porque nesse tipo de cobertura havia brechas a explorar.
Mas o país vive em regime democrático há vinte anos. Se a mídia, nesse período mais recente, sobretudo quando ainda dispunha de redações com bom número de repórteres, não estimulou na sociedade uma demanda capaz de fazer governos eleitos mudarem métodos cuja inépcia é demonstrada todo dia, então a mídia falhou.
Ou… ou, tese defendida por integrantes da polícia, o que a sociedade quer é isso mesmo – e a mídia o reflete.
A reportagem do Estadão é um elo nessa cadeia de desatinos. Elo importante, dada a relevância do jornal e da edição, dominical.
Quando temas como esse são tratados, caminha-se sobre um fio de navalha e é necessário estar consciente disso.
A liberdade de analisar as implicações
O processo de apuração, redação e edição é uma sucessão de escolhas. Toda pretensão de neutralidade (não confundir com isenção profissional) deve ser recebida com reserva, porque serve de biombo para se fugir da responsabilidade jornalística, que é pública.
Em 1972, a crítica de cinema Pauline Kael escreveu na revista The New Yorker um libelo contra o filme Laranja Mecânica, de Stanley Kubrick.
A citação não se aplica à reportagem que aqui se discute. Para começar, trata-se de ficção, no primeiro caso, e de jornalismo, no segundo. (Aceite-se essa distinção de gêneros mesmo não tendo ela precisão ‘científica’, como reconhecerá qualquer repórter que se tenha dado o trabalho de pensar no assunto.)
Além disso, a reportagem não transforma as vítimas em personagens tão odiosas que façam os vilões parecerem menos canalhas, como, segundo Pauline, se vê no filme de Kubrick.
São outras, como se procurou mostrar acima, as características criticáveis da matéria jornalística publicada no Estadão.
Mesmo assim, vale a pena meditar sobre o trecho abaixo, extraído de For Keeps: 30 Years at the Movies (de Pauline Kael, pág. 418, tradução livre):
‘(…) Estamos sendo gradualmente condicionados no cinema a aceitar a violência como um prazer sensual. Os diretores costumavam dizer que estão nos mostrando sua face real, e como é feia, a fim de nos sensibilizar para seus horrores. Não é necessário ser muito perspicaz para ver que eles estão, na verdade, nos dessensibilizando. (…) Parece haver uma crença de que se uma pessoa se ofende com a brutalidade do filme, é alguém que está nas mãos dos que preconizam a censura. Mas isso retiraria de nós que não acreditamos na censura o uso do único elemento que pode contrabalançá-la: a liberdade da imprensa de dizer que há algo de possivelmente nocivo nesses filmes – a liberdade de analisar suas implicações. Se não usarmos essa liberdade crítica, estaremos implicitamente dizendo que nenhuma brutalidade é demasiada para nós (…)’.
A questão das Febens, como algumas outras de maior visibilidade e impacto na vida social, requer urgente revisão crítica do papel da mídia, sem a qual provavelmente não haverá mudança promissora nas políticas públicas.
Enquanto esse processo não ocorre, todo cuidado, insista-se, é pouco. A melhor das intenções pode se cortar em armadilhas de texto e contexto.