A imprensa brasileira tem demonstrado excessiva timidez na questão das indenizações milionárias concedidas a vítimas do regime militar. Embora eventualmente toque no assunto, como ocorreu na semana passada, deixa ainda o leitor muito longe de entender como a família de uma jovem morta sob tortura recebe 100 mil reais enquanto um escritor de sucesso, bem remunerado como colaborador de jornais e emissoras de rádio, ganha um prêmio de loteria pago com dinheiro público.
A reportagem assinada por Carlos Marchi no Estado de S.Paulo de domingo (14/11), por exemplo, embora alentada, fica longe de esgotar o assunto e perde uma grande oportunidade de revelar a festa em que se transformou o processo de regulamentação das reparações. Mas é uma boa pauta para quem queira ouvir o que mais têm a contar a ex-secretária-executiva da Comissão dos Mortos e Desaparecidos, Elizabeth Vargas, ou o presidente do PT, José Genoíno. Elizabeth considera uma imoralidade certas concessões. Genoíno evita julgamentos, mas não esconde sua contrariedade.
Genoíno, que diz ter solicitado o engavetamento de seu pedido de indenização, tem mais a contar sobre a atuação de grupos de interesse na mudança da lei. Ex-assessores do Ministério da Justiça no governo anterior também podem ser consultados para dar uma idéia dos lobbies que se sucediam nos gabinetes – entre os quais se destacava um renomado advogado conhecido por defender perseguidos políticos – buscando forçar uma regulamentação que beneficiasse especificamente a determinados requerentes.
O caso expõe certas personalidades da mídia, e de alguma forma nos oferece como símbolos a professora universitária Anita Leocádia Prestes e o escritor e jornalista Carlos Heitor Cony, colocados em lados opostos numa espécie de balança moral de cuja essência a imprensa tem evitado tratar. Como pano de fundo, temos um custo que deve chegar aos 4 bilhões de reais em indenizações e algumas centenas de vidas colocadas em suspenso durante duas a três décadas ou drasticamente eliminadas pela insanidade do regime militar.
Matérias ufanistas
Anita Leocádia, filha de Luís Carlos Prestes e Olga Benário, nascida numa prisão da Alemanha nazista e impedida por muito tempo de trabalhar no Brasil da ditadura, também solicitou o benefício previsto na lei, foi contemplada com 100 mil reais e a contagem do tempo de serviço. Abriu mão do dinheiro por não julgar moralmente defensável a indenização como foi definida em lei. Ficou apenas com a contagem de tempo de serviço para poder requerer sua aposentadoria como professora de História do Brasil na Universidade Federal do Rio de Janeiro.
Cony solicitou e obteve uma indenização superior a 1,4 milhão de reais, pelo acumulado das perdas que supostamente sofreu ao ser perseguido pelos militares, além de uma pensão mensal de 23.187,90 reais reduzida para 19.115 reais, o teto máximo de remuneração do funcionalismo público. Para chegar a esse valor, o colega apresentou cálculos que afirmou terem sido baseados na tabela de remunerações do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio de Janeiro. A direção do sindicato o desmentiu.
A imprensa poderia nos fazer o favor de publicar o texto comentado da lei 10.559, de 13 de novembro de 2002, para esclarecer como nasceram as distorções que dão a Cony o direito a um valor muitas vezes superior ao concedido, por exemplo, ao ex-militar Apolônio de Carvalho, cujas perdas decorrentes de toda uma vida dedicada à luta contra as ditaduras foram com certeza muito mais relevantes.
Não se deve esquecer que o espírito da lei de anistia recomendava ressarcir as perdas causadas a cidadãos perseguidos por defender a democracia, pela interrupção em atividade produtiva imposta arbitrariamente pelo regime autoritário. Isso precisa estar no contexto do noticiário, para que possam os leitores fazer seu juízo, sem que muitos sejam induzidos a renegar a anistia e a própria redemocratização do país.
Carlos Heitor Cony trabalhava no Correio da Manhã, no Rio, em 1965, e foi forçado a se demitir, por pressão dos militares, segundo argumenta, por haver escrito um artigo com crítica ao Ato Institucional nº 2. Detido pela primeira vez naquele ano e outras vezes em 1972, durante passeatas de protesto, afirma que também perdeu o emprego na TV Rio por perseguição do regime militar.
É certo que trabalhou durante muitos anos como editorialista da revista Manchete, escrevendo textos ufanistas sobre o regime militar, que eram assinados pelo dono da revista, Adolpho Bloch, o que levou alguns colegas do antigo O Pasquim a lhe darem o apelido de Carlos Heitor ‘Conyvente’.
Estofo moral
Não é papel dos observadores deste sítio julgar as motivações de quem se considera vítima da ditadura, mas estimular a imprensa a nos revelar como a luta contra aquele trecho tão tenebroso de nossa História, que tanta dor causou a toda uma geração de brasileiros, pode acabar em circunstâncias que o vulgo chamaria de ‘avacalhação’.
A rigor, pouco se pode apresentar além de tecnicismos legais para respaldar a distribuição de reparações tão desiguais. Mesmo que pudéssemos medir de alguma forma o sofrimento de cada brasileiro atingido diretamente pela ação da repressão, tampouco estamos aqui habilitados a calcular a intensidade dos danos morais que pode ter causado ao escritor famoso o fato de ter sido obrigado a trabalhar sob pseudônimo, a ponto de fazê-lo merecedor de uma reparação milionária saída dos cofres públicos.
Talvez a porção jornalista de Carlos Heitor Cony pudesse nos esclarecer, em sua coluna na Folha de S.Paulo, ou numa de suas conversas na Rádio CBN, no programa que protagoniza diariamente, intitulado Liberdade de expressão. Na semana passada, ele confessou, durante o programa, ter inventado para a Manchete uma série de ‘reportagens’ insinuando que John Kennedy e Marilyn Monroe não estariam mortos, mas vivendo clandestinamente numa cidade do interior dos Estados Unidos. Com o mesmo desprendimento poderia nos iluminar com suas razões, já que não é unanimidade a justeza de sua reclamação.
Cony pediu o que julga merecer. E levou. Viúvas de mais de uma centena de desaparecidos ainda aguardam uma resposta, após uma vida inteira de sofrimento. Precisamos saber quem atuou nos bastidores do Ministério da Justiça para aprovar, a toque de caixa, no final do governo Fernando Henrique, o texto da lei que permite tais distorções. A imprensa pode nos esclarecer como e quem se beneficiou com os polpudos honorários advocatícios que acompanham algumas indenizações milionárias.
Afinal, ninguém está imune ao julgamento de seus contemporâneos e com certeza nem todos têm o mesmo estofo de Anita Leocádia Prestes.
‘Não tem cabimento eu receber dinheiro do governo. Sou uma pessoa que trabalha, e há outros anistiados que precisam mais do que eu ser contemplados. Quando assumi determinadas posições políticas, sabia das conseqüências. Isso não se paga com dinheiro, pelo menos no meu caso. Mas não quero julgar ninguém’, foi o que declarou Anita Leocádia ao ser informada de que fora beneficiada.
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Em tempo: até o fechamento deste texto (15h49 de 15/11), a Folha de S.Paulo seguia ignorando o tema. Nenhum de seus colunistas, entre eles Carlos Heitor Cony, se referiu à questão das indenizações milionárias. O Estado de S.Paulo voltou ao tema na segunda-feira (15/11), com declarações do jurista Miguel Reale e do professor Leôncio Martins Rodrigues, da USP, além de artigo do sociólogo José Martins, relatando o caso do ex-vaqueiro Aparecido Galdino Jacinto, que passou nove anos internado no Manicômio Judiciário do Juqueri por determinação da Justiça Militar e não foi lembrado entre os indenizados.
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Jornalista