Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Tromba d’água, tromba de omissão

O que será que causou a maior tragédia climática brasileira com a quase destruição das cidades serranas do Rio de Janeiro? Foi La Niña? Foi a corrente de ventos que vem da Amazônia? Foi o aquecimento global? Foram as montanhas que cercam as cidades e fazem aumentar a concentração de chuva em determinadas regiões? Foi a omissão dos prefeitos? Foi a omissão do governo federal ou a do governo estadual? Foi a ignorância das famílias flageladas que vão morar nas encostas de morros e montanhas? Foi a especulação imobiliária?


Os leitores dos grandes jornais e revistas brasileiros foram brindados com uma vasta cobertura da tragédia e também com uma vasta exploração de suas possíveis causas, a ponto de poderem escolher uma delas ou – quem sabe ? – um grupo delas. Na condição de mero leitor, prefiro ficar com uma única causa, não mencionada por nenhuma mídia: a já quase tradicional omissão da imprensa brasileira na cobertura dos assuntos urbanos importantes, como esse da ocupação sistemática das áreas de risco.


A imprensa brasileira – refiro-me àquela que usa o papel como meio de transmissão de informações – cobre o fenômeno das enchentes e quaisquer outras tragédias climáticas de modo apenas reativo. Aconteceu, virou notícia. A ausência de cobertura sistemática, mais profunda, que ultrapasse os eventos trágicos, é, no fundo, o colchão confortabilíssimo onde dorme a omissão dos poderes públicos que teriam obrigação de eliminar as áreas de risco ou minimizar os efeitos trágicos dos eventos climáticos extremos.


Dinheiro jogado no lixo


Mesmo essa cobertura reativa lembra às vezes o chamado samba do crioulo doido, talvez porque seja muito mais cômodo atribuir as causas de tragédias a La Niña, aos ventos amazônicos, ao aquecimento global, ao ‘populismo’ de prefeitos, do que, por meio de apuração consequente, trazer soluções efetivas e, ao longo do tempo, monitorar sua implementação.


Existe um quê de leviandade nessa cobertura. Neste momento, a imprensa deveria saber que não se pode mais atribuir as causas de nenhum evento climático extremo ao aquecimento global sem levar em conta a forte oposição dos dissidentes da teoria do efeito-estufa – que no Brasil tem a voz mais consistente no físico Luiz Carlos Molion. Quem for entrevistá-lo neste momento certamente vai ouvir que a onda de eventos climáticos extremos registrados nos últimos cinco anos no Brasil tem sido causada pelo ciclo de resfriamento – e não de aquecimento – que o planeta atravessa.


O equacionamento racional e adequado dos problemas das áreas de risco e daquelas sujeitas a inundações cíclicas só pode vir do trabalho pertinaz da imprensa, como agente de pressão sobre os poderes constituídos. A imprensa, contudo, parece desinteressada em exercer esse papel e, com o desinteresse, surgiu um outro problema, ainda mais grave: o despreparo para exercê-lo.


O caso das enchentes que assolam há vários anos a capital paulista é o paradigma. Prefeitura e governo estadual já investiram nos últimos anos uma fábula de recursos na dragagem do rio Tietê e na construção de piscinões para reter a água das chuvas que confluem para as cabeceiras. Dinheiro jogado na lata de lixo, pelo que se observou nos últimos dias.


Campanhas educacionais sistêmicas


Tivessem os grandes jornais paulistanos e as grandes revistas de atualidade transformado o tema – enchentes em São Paulo – em pauta sistemática, certamente algum repórter teria ido bater às portas da Escola Politécnica da USP, onde a área de hidráulica há vários anos detectou que o trecho do rio Tietê que vai da Zona Leste a Osasco não tem declive suficiente para dar vazão às águas das chuvas mais fortes que assolam as cabeceiras. Dragagem e piscinões serão apenas dinheiro atirado pela janela.


Um dos professores dessa escola de excelência já sugeriu, em artigo publicado há muitos anos no Estado de S.Paulo, que a solução para o problema das enchentes naquelas regiões da cidade só pode ser equacionada em definitivo com a construção de um túnel, entre as cabeceiras e Osasco, com declive suficiente para dar vazão às águas acumuladas na Zona Leste. De enchente em enchente, com o olhar olímpico da mídia, São Paulo tem jogado fora a montanha de recursos que permitiriam a adoção desse projeto em tempo recorde.


Uma cobertura sistemática dos problemas das áreas de risco levaria a imprensa a descobrir algo que já se estabeleceu como conhecimento da valorosa Defesa Civil de Santa Catarina: a percepção de risco das famílias que vão morar no sopé ou nas encostas de morros é igual a zero. ‘Se perguntarmos a uma pessoa que mora nas encostas qual o local mais seguro para viver que ela conhece, com certeza vai dizer que é a sua própria casa’, diz um dos responsáveis pela instituição. Com informações desses aspectos, a mídia poderia induzir o poder público a adotar campanhas educacionais sistêmicas, a serem introduzidas nas escolas, para ampliar a percepção de risco das famílias mais carentes. Vai ficar mais fácil para o poder público reprimir a ocupação das áreas de risco se tiver a população da cidade mais consciente, como sua aliada.


Omissão contumaz


Uma agência internacional de cooperação, a japonesa Jica, estudou profundamente o problema crônico das enchentes no Vale do Itajaí, em Santa Catarina, e apontou como solução a implantação de um canal extravasor que aliviasse as cheias do rio Itajaí-Açu, levando parte das águas para a praia de Armação, alguns quilômetros acima da foz, junto ao porto de Itajaí. Se o canal vai ou não ser adotado, se deve ou não ser adotado, ninguém sabe. A mídia só vai entrar no tema caso ocorra mais uma tragédia no Vale. Não gostaríamos que fosse assim, mas assim será.


Se voltarmos à região serrana do Rio de Janeiro, vamos descobrir que as cidades brasileiras são administradas sem a menor percepção de seus problemas de segurança. Despreparo dos prefeitos na gestão dos problemas da cidade ou negligência e pura irresponsabilidade – daquele tipo característico de ‘irresponsabilidade útil’, pois todos sabemos que prefeitos costumam ser ‘parceiros’ do especulador imobiliário? Sou tentado a dizer que as duas hipóteses são verdadeiras. O que fazer, então? Como capacitar os nossos prefeitos para enxergar com foco os problemas de segurança de sua cidade? Como reprimir a ocupação irracional das áreas de risco? Seria interessante a adoção de leis mais punitivas e coercitivas?


Como se vê, os aspectos que levam a esses dramas rotineiros da vida brasileira são muitos e complexos. Há um oceano de providências a serem tomadas para que cheguemos um dia a porto seguro. A distância que nos separa desse porto, no entanto, tem sido substancialmente alongada pela imprensa, dentro de sua omissão contumaz e de seu notório superficialismo.

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Jornalista