Fez um ano na terça-feira (1/6) o fechamento da Gazeta Mercantil, que por muitos anos foi o principal jornal de economia e negócios do país mas que pelo menos nos últimos dez vinha enfrentando sucessivas crises. Com uma equipe pequena, de 70 profissionais (menos de 10% do que já havia tido um dia, no auge, nos anos 1980 e 1990 – perto de 1.200 pessoas espalhadas por todo o país, entre os melhores salários do mercado), o jornal fechou as portas, ironicamente, no Dia da Imprensa e às vésperas de completar 90 anos, o que aconteceria agora em 2010.
Para marcar a data, J&Cia reproduz artigos de dois integrantes daquele time, Costábile Nicoletta e Gabriel Sales, que, juntos, editavam a primeira página da GZM e ambos hoje editores-executivos do Brasil Econômico. Costa informa que os textos, escritos em julho de 2009, seriam publicados num site sobre o fim do jornal, que acabou não vingando.
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Um comentário econômico
No começo de maio do ano 2000, integrei a primeira equipe de jornalistas do Valor Econômico. No final de maio de 2009, participei da última turma de profissionais que trabalharam na Gazeta Mercantil. Tive a oportunidade de conhecer por dentro a redação dos dois principais jornais de economia do Brasil. Na Gazeta, foi minha segunda passagem. Já havia estado lá de 1988 a 1993, levado por uma das pessoas mais generosas que já conheci: Ariverson Feltrin, que à época não me conhecia direito, mas confiou na indicação que Koichiro Matsuo, um amigo comum nosso, lhe fez acerca de um repórter novato que nunca imaginara construir sua carreira em publicações de negócios.
Também nunca me ocorrera fechar, literalmente, a última edição de um periódico tão tradicional quanto a Gazeta Mercantil, que parou de circular não porque era inviável editorial ou comercialmente, mas sim pelas infelizes idiossincrasias de seus administradores. Apesar de nossas indigentes condições de trabalho, isso jamais empobreceu nossa vontade de redigir um bom jornal. Aprendíamos, dia a dia, a fazer mais com cada vez menos, a usar a preterição no oferecimento de pautas como inspiração para escrever histórias diferentes das oficiais. E recobramos nosso respeito ao oferecer ao leitor um produto melhor do que aquele que ele esperava (e nossos concorrentes também).
Éramos privados das mais comezinhas necessidades para o exercício profissional e, ainda assim, o jornal não deixou de ser impresso um só dia. Concluir cada edição não era mais uma obrigação contratual. Tornou-se uma causa para todos que trabalhavam na empresa. Essa solidariedade coletiva contribuía para amenizar nossas angústias pessoais. Entregar o jornal pronto era mais que um dever cumprido. Soava cotidianamente como um ato de heroísmo de todos os envolvidos nessa tarefa.
Quem não viveu esses momentos imaginará que estou exagerando. Quem viveu sabe que estou sendo até parcimonioso nos detalhes. Fico imaginando o que conseguiríamos fazer se trabalhássemos numa empresa normal.
Essa era a nossa redação, que não escondia seus erros, ainda que lhe sonegassem seus acertos; que se manteve íntegra a despeito de todas as situações adversas que lhe infligiram e da qual sempre vou me orgulhar de ter comandado e que me ensinou a ser um profissional muito melhor do que eu era antes de participar dela.
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Minhas pasárgadas
Assim que circulou a última edição da Gazeta Mercantil, fui-me embora para minha outra pasárgada, um sítio produtivo, onde os pássaros ainda cantam do amanhecer ao pôr-do-sol e, nas noites de céu limpo, é possível observar a Via Láctea. Digo ‘outra’ porque a Gazeta também foi para mim uma espécie de pasárgada nas duas vezes em que lá trabalhei, em ambas levado pelas mãos amigas do Klaus Kleber. Na primeira, de maio de 1973 a março de 1977, comparando com os padrões de hoje na maioria das redações, era um agitado paraíso jornalístico. Voltei 27 anos depois, em setembro de 2004. ‘Tenho 26’, disse a repórter Luciana Collet quando comentei isso com ela.
Ao chegar à rua Ramos Batista, na Vila Olímpia, onde ficava a sede do jornal, eu sabia de tudo, ou quase tudo – salários atrasados, falta de condições de trabalho, jornalistas desrespeitados pessoal e profissionalmente, diretores incompetentes e mentirosos, entre outras coisas desalentadoras – e imaginava encontrar uma Redação desmotivada com um ambiente pouco receptivo.
Minha grande e agradável surpresa foi ver que a maioria absoluta dos jornalistas, das jovens estreantes, com pouco mais de duas décadas de vida, aos ‘velhinhos’, era composta de gente competente, com muito pique, e fundamentalmente honesta, cuja atividade diária revelava flagrante contraste com o comportamento da cúpula do jornal e seus periféricos.
Numa atitude distanciada da realidade, extremamente agressiva em relação aos profissionais da Redação, alguns dos membros dessa cúpula adotaram como norma de conduta desprezar o veículo impresso e o trabalho de quem o produzia, procurando enaltecer o que classificavam como ‘novas mídias’, paradoxalmente, usando para isso as páginas do jornal. Sem compromisso com a seriedade da informação, esqueciam-se de que a notícia isenta, honesta e bem apurada sempre foi e será recebida com sucesso através de qualquer meio, do papiro à web.
Isenção e honestidade na apuração eram os valores mais importantes dos jornalistas da Gazeta. Praticamente sós, sem condições mínimas de trabalho, discriminados por alguns assessores de comunicação e até por colegas de outros veículos que, ressentidos com os controladores da empresa, ‘vingavam-se’ nos jornalistas, e, ainda, sem o apoio dos superiores, todos mantiveram a dignidade profissional até a última edição. Mesmo quando já era inevitável o triste fim, acossavam concorrentes com alguns furos e mantinham o jornal com um padrão de qualidade. Gente assim incomoda muito os mal-humorados, que não veem a informação como um dos pilares dos regimes democráticos, mas apenas como algo a engrossar a fatura no final do mês, não importando que seja manipulada ou mutilada.
Era admirável e, às vezes, até inexplicável que a equipe da Gazeta, diante de todo tipo de adversidade, conseguisse manter um excelente humor, que não se via nem em redações com boas condições de trabalho. Mesmo na correria do fechamento havia tempo para momentos de descontração.
Ter trabalhado com essas pessoas foi uma das melhores coisas de minha vida profissional e motivo de muito orgulho pessoal.
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Jornalistas