A partir do trabalho dele – e de outros gênios como David Mazzuchelli e Frank Miller –, os quadrinhos norte-americanos ganharam também as galerias de arte e as universidades, assumiram a dimensão da literatura e romperam as fronteiras entre a cultura de massas e o artesanato mais fino. E ele está no Brasil desde terça-feira (8/11), para palestra neste sábado, às 16h, no Festival Internacional de Quadrinhos de Belo Horizonte (MG). Amanhã, participa de uma sessão de autógrafos na capital mineira.
Ele é o já lendário Bill Sienkiewicz, um desses diamantes raros que surgem como por encanto no meio da indústria cultural e revolucionam o meio em que trabalham. Isso começou a acontecer já aos 19 anos, quando começou a desenhar a série Moon Knight (Cavaleiro da Lua, no Brasil) na revista do Hulk. Ultraindependente, Sienkiewicz fez um dos gibis mais admirados dos anos 1990,Elektra Assassina, que ganhou um Kirby Award e foi transportado para as telas com Jennifer Garner no papel principal. “Nunca vi o filme. Decidi que não ia assistir depois que vi que o roteiro previa uma jovem sidekick (heroína auxiliar) para o personagem Elektra. Elektra jamais admitiria uma ajudante de ordens”, afirmou o artista, falando por telefone ao Estado de sua casa em Nova York, na segunda-feira, pouco antes de embarcar para o Brasil. Já esteve no país, visitou favelas, tem amigos entre os cartunistas brasileiros e diz que os fãs de quadrinhos no país são “maravilhosos”.
Sienkiewicz fez versões memoráveis de clássicos da literatura, como Moby Dick (Herman Melville), Frankenstein (Mary Shelley) eO Caçador de Androides (Philip K. Dick). É um artista de um ecletismo absurdo: além de expor no Museum of Contemporary Art (MoCA) de Los Angeles, fez capas de discos para RZA (do Wu Tang-Clang) e Kid Cudi, peças publicitárias para produtos industriais e edita sketchbooks preciosos para aspirantes a quadrinistas.
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“Trabalho sob encomenda”
Hollywood agora descobriu os heróis de quadrinhos. Há uma avalanche de filmes baseados em quadrinhos. Você tem visto esses filmes? Tem algum bom, em sua opinião?
Bill Sienkiewicz– Vi alguns. Watchmen é bom, e também há algumas versões de Batman que são boas. Eu gostaria de ver algo como Stray Toasters no cinema. Mas, em geral, as adaptações estão servindo a uma máquina de fazer dinheiro. São produções apoiadas principalmente nos efeitos especiais e que não respeitam tanto as particularidades de cada personagem. Há também algum tipo de simbiose acontecendo, de fato, nos quadrinhos – filmes como Kick Ass, que usam novas tecnologias e reinventam a linguagem, reinventam a si mesmos. Acho apenas que ainda é preciso que as ideias achem as combinações certas.
Você desenhou super-heróis de quadrinhos e também versões de Moby Dick, de Melville, e Frankenstein, de Mary Shelley. Onde se diverte mais?
B.S. – Amo desenhar super-heróis. Considero que eles já se tornaram ícones clássicos. Eu me divirto fazendo porque cresci com eles. Não compartilho dessa ideia de que super-heróis são coisas para crianças. Eu os uso como uma mídia como outra qualquer, como uma ponte para a literatura, para o teatro. Crio algo que os possa projetar além do entretenimento. Quadrinhos têm essa flexibilidade, eles podem se prestar a qualquer coisa.
Em sua página no Twitter, você se define como um “artista comercial”. O que quer dizer com isso?
B.S. – Digo isso porque trabalho sob encomenda, trabalho para clientes, empresas corporativas. Faço design, pôsteres, capas de discos, peças de publicidade, desenho para galerias e faço pinturas com fins comerciais.
“Começo com segurança e vou arriscando”
Você não é um quadrinista típico. Usa aquarela, usa referências de diversas escolas artísticas, trabalha na fronteira das artes visuais. Quais suas influências?
B.S. – Estilisticamente, minha maior influência foi Neal Adams. Dele aprendi as técnicas, o conceito de um comic book, os macetes. Mas venho de uma escola de arte, então estratégias de desenhar para revistas e para pôsteres de filmes me foram ensinadas de forma didática, histórica. Houve um tempo em que me liguei muito nos impressionistas, e depois em Robert Rauschenberg, Kurt Schwitters, um pouco também de Andy Warhol. Apreciei bastante alguns aspectos da pop art porque tenho muito interesse por escolas artísticas que forcem fronteiras, que sugiram que se pode avançar em outros meios. Gosto muito também do trabalho de Art Spiegelman. É um cara muito talentoso e inspirador. Aquelas publicações que ele editou e nas quais desenhou, como Raw, foram decisivas para muitos de nós quando começamos.
Você parece também um tanto quanto obsessivo em seus desenhos.
B.S. – Provavelmente essa é uma observação correta. Sempre pego algo para desenhar e não paro de trabalhar naquilo até que descubra a sua verdade, o seu motivo de existir. Acho que não é uma preocupação só minha, é algo comum no meio em que trabalho. Todo desenhista tem essa obsessão. Mas geralmente me divirto muito também. Meu foco sempre é chegar a algo que ainda não conheço bem, que não domino bem. Começo com segurança e vou me arriscando. Isso é excitante.
“Will Eisner foi um dos que me apoiaram”
Nos dias de hoje, é impensável a arte dos quadrinhos sem a internet. Você acha possível imaginar alguém criando HQs totalmente fora da internet?
B.S.– Boa questão. Acho que é possível. O que não é possível é ver o acesso ao seu trabalho multiplicado sem a internet. A potencialização que a internet traz para a divulgação de um trabalho é algo do qual não se pode prescindir. Agora mesmo, estou fazendo uma versão de Elektra para iPad. É impressionante a qualidade que se pode obter nessa ferramenta. Há diferentes aplicações, diferentes mídias, e tudo pode ser usado em prol do criador. Sinceramente, eu não sei para onde vamos agora.
Li que você acaba de fazer uma capa de disco para o rapper Kid Cudi. Isso me lembra de Robert Crumb desenhando capa de disco para Janis Joplin. Como realiza esse trabalho, o que ele envolve?
B.S. – Se eu gosto do músico, sempre ajuda. Sou um cara eclético, não tenho um estilo particular de música preferido, gosto de muita coisa diferente. Mas o que faço, quando pinta algo assim, é sempre buscar capturar o estilo daquele músico em minha arte. Ouço a música do artista e tento traduzir aquilo para a minha peça. Não preciso necessariamente gostar da música.
Você foi amigo do lendário Will Eisner. E chegou a desenhar o Spiritpara uma edição especial do herói. Mas não vejo muita similaridade entre o seu trabalho e o de Eisner.
B.S.– Foi uma honra especial conhecer um homem como ele. É engraçado porque nós dois vivíamos nos Estados Unidos, mas raramente a gente se encontrava aqui. Sempre era fora do país, nas situações mais inusitadas. Chegamos a nos ver em Timbuktu, na África. E cada vez que nos víamos, mais a gente se divertia, tínhamos muito em comum. Você tem razão, ele não foi influente na minha arte, mas foi um dos que me apoiaram na carreira. Will foi quem me indicou para a Peguin, para fazer as ilustrações do livro Voodoo Child: The Illustrated Legend of Jimi Hendrix. Will me apresentou a Harvey Kurtzman, que é uma lenda das artes, e também conheci Bob Kane por intermédio dele. Pouca coisa foi tão importante quanto ter conhecido esses gênios.
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[Jotabê Medeiros é jornalista]