O leitor das seções de Economia pode apontar pelo menos dois fatos positivos, num balanço do jornalismo em 2005. Em primeiro lugar, as páginas econômicas permanecem entre as melhores da imprensa diária (assim como a cobertura de Cidades continua a merecer o troféu da inépcia). Com todos os seus defeitos, as editorias de Economia e Negócios ainda estão entre as mais bem organizadas e mais sofisticadas. Na média, seu pessoal só não é mais especializado que as equipes de Esportes. Em segundo lugar, o noticiário tornou-se menos filtrado pela visão do setor financeiro. Não se livrou dessa praga, porque as ‘fontes do mercado’ oferecem ao jornalista um mundo arrumadinho e prontinho para publicação – e ninguém é de ferro.
Mas houve sinais de reconciliação com o mundo material. Houve até relatos baseados nos olhos e ouvidos do repórter, uma raridade, numa época de jornalismo esclerosado e burocrático. Todos os grandes jornais publicaram boas histórias sobre a aftosa em Mato Grosso do Sul. Por um momento a reportagem pareceu recobrar o velho prestígio.
Houve, também, nos melhores momentos, um esforço para tornar mais clara e mais completa, desde os títulos e subtítulos, a apresentação de notícias importantes. Títulos como ‘Safra terá área menor, mas produção poderá ser recorde’ e ‘Superávit bate recorde, mas os juros também’, são exemplos de edição cuidadosa, em que se procura transmitir a informação com o máximo de critério.
Mas esse esforço não é permanente, e a qualquer momento o leitor pode trombar com uma barbaridade. Muitos títulos anunciaram a aceleração da inflação, quando ocorria simplesmente uma deflação menor dos preços no atacado, num ajuste perfeitamente normal e saudável. E houve quem confundisse a menor criação de empregos formais em novembro com uma redução dos empregos formais, quando se trata, obviamente, de duas coisas muito diferentes. Confusões desse tipo revelam baixo controle de qualidade e justificariam uma reclamação ao Procon.
Defeito de acabamento
No balanço, o leitor encontrará motivos para reclamar do material oferecido pelos jornais. As falhas e vícios podem variar de jornal para jornal, mas o leitor disposto a valorizar seu dinheiro poderá, de modo geral, listar pelo menos as seguintes queixas:
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Os jornais continuam gastando espaço demasiado com repercussões, mesmo quando inteiramente previsíveis (metade dos cadernos de Economia é inutilizada com esse material, um dia depois das decisões do Comitê de Política Monetária – Copom sobre os juros básicos). As análises técnicas são pouco exploradas. Dá-se muito valor à opinião e quase nenhum aos argumentos.**
Falta acompanhamento da atividade legislativa. Com freqüência, os jornais só mencionam os projetos quando são aprovados ou estão a um passo da aprovação. Os encarregados da cobertura no Congresso não parecem dar importância aos projetos econômicos e financeiros. Em contrapartida, repórteres de Economia e Finanças não dão bola para os projetos, não os lêem e raramente parecem estar em condições de noticiá-los. Quando tratam dos projetos, limitam-se, quase sempre, a transmitir as opiniões contrárias ou favoráveis, sonegando ao leitor uma informação direta sobre o texto.**
Falta continuidade na cobertura de vários assuntos. É como se os jornais não tivessem memória. Os estudiosos do jornalismo pedem mais contextualização. Com menor pedantismo, pode-se pedir, simplesmente, que os autores das matérias dêem maior atenção aos assuntos e expliquem aos leitores de que diabo se trata, quando as questões são complexas. O fato do dia pode ser apenas um fragmento de uma história longa e complicada. Ninguém deveria, por exemplo, escrever uma notícia sobre o futuro do acordo automotivo Brasil-Argentina sem um conhecimento razoável dos antecedentes e dos interesses de cada lado.**
A maioria dos grandes jornais continua a esnobar o agronegócio, embora seja um dos setores mais dinâmicos da economia brasileira e a principal fonte de superávit comercial. O noticiário sobre agricultura continua a ser uma das principais fontes do besteirol publicado no dia-a-dia, porque é quase sempre redigido por alguém que não tem a menor idéia do que está fazendo. De vez em quando algum jornal ainda compara a safra de um mês com a do mês anterior, como se as estimativas mensais publicadas pelo IBGE e pela Companhia Nacional de Abastecimento (Conab) se referissem a safras totais e não fossem mera atualização de cálculos. Não são muito incomuns asneiras do tipo ‘o Brasil colheu em setembro 112 milhões de toneladas de grãos, 1,5 milhão a mais do que em agosto, segundo o IBGE’.**
Bobagem semelhante aparece com regularidade no material sobre atividade da indústria. Frases como ‘no mês passado a capacidade instalada foi 84,2%’, em vez de ‘a indústria utilizou 84,2% da capacidade instalada’, denotam escandaloso amadorismo. Além do mais, aquela frase não tem sentido e nenhum editor parece perceber a barbaridade. Na melhor hipótese, é um ultrajante defeito de acabamento. Na pior, é uma preocupante demonstração de despreparo.Direto de reclamar
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Os pauteiros e editores continuam mais preocupados com a intriga do que com a substância dos assuntos, mais atentos a frases do que ao miolo das notícias. Sound bites podem ser bons para temperar um texto, mas valorizá-los como se fossem a própria notícia é ofender o leitor.**
Esses mesmos pauteiros e editores adoram os fatos locais acima de todas as coisas. Todo repórter que acompanha um ministro ao exterior, como enviado especial ou como correspondente, é obrigado a fazer perguntas idiotas sobre assuntos internos. Em cada entrevista do ministro Antonio Palocci durante uma reunião do Fundo Monetário Internacional há nove perguntas sobre a taxa Selic e sobre a taxa de câmbio e uma sobre os assuntos em debate na reunião.Três observações: 1) ele deve ter alguma coisa sobre os temas em debate no encontro ou sobre os contatos paralelos – com ministros de outros países, com o presidente do Fed e assim por diante; 2) para falar sobre juros e câmbio ele não precisa sair do Brasil; 3) suas respostas sobre esses assuntos são inteiramente previsíveis e anódinas.
Resposta típica: ‘Os juros continuarão a cair na medida em que o Banco Central constate uma redução das pressões inflacionárias’. O mais espantoso, se é que algo ainda pode espantar, é que as agências distribuem esse mingau de aveia como se fosse uma informação importante, ansiosamente esperada pelos cavalheiros do mercado.
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Falta um consistente e permanente acompanhamento dos temas de infra-estrutura. Todo dia alguém lembra que o crescimento da economia poderá ser comprometido em pouco tempo pela escassez e pelo mau estado das estradas, pela deficiência dos portos e pela insuficiente oferta de energia, mas os jornais apresentam pouco material sobre essas questões. De vez em quando aparece alguma grande reportagem, mas bom jornalismo não se faz apenas com um grande trabalho ocasional. Questões vitais são questões para o dia-a-dia e vale a pena manter alguns repórteres e redatores especializados para pautar e preparar matérias.**
Continua a faltar uma articulação maior entre os temas da economia global e os assuntos da economia brasileira. Os vínculos são evidentes quando se trata de petróleo e de juros, mas é preciso ir além disso. Exemplo: os pauteiros e editores demoraram a acordar para a importância do fim do acordo dos têxteis, que mantinha o mercado sujeito às cotas de importação dos grandes países. Com a eliminação das cotas, os produtores brasileiros teriam de enfrentar os chineses num campo muito mais aberto. A imprensa européia dedicou reportagens enormes à mudança do regime e à invasão de produtos têxteis chineses bem antes de a imprensa brasileira entrar no assunto. Isso é explicável sem dificuldade: as pautas são dedicadas preferencialmente a uma lista de assuntos burocraticamente estabelecida.***
Esta seria uma lista mínima de queixas de um leitor um tanto cricri, mas interessado, legitimamente, em valorizar seu dinheiro e seu tempo de leitura. Se ele pode reclamar de camisas e cuecas malfeitas, e até ser indenizado quando os produtos são insatisfatórios, como negar-lhe o direito de reclamar dos jornais?
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Jornalista