Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um caso raro de sobrevivência virtual

Autointitulado ‘jornal eletrônico’, o site Seculodiario está completando dez anos de exposição permanente na internet. Trata-se de um diário produzido em Vitória e focado exclusivamente na realidade do Espírito Santo. É um caso raro de sobrevivência na mídia virtual. Em dias normais, ele é acessado por 15 mil a 20 mil pessoas. A contagem chega a dobrar quando o bicho pega no noticiário comandado por Rogério Medeiros, veterano repórter de jornal e fotógrafo especialista em fotos preto & branco que começou a trabalhar no início dos anos 1950 como auxiliar de campo do famoso botânico capixaba Augusto Ruschi (1915-1986).

O Século começou em março de 2000. De início, era uma revista mensal de reportagens com que Medeiros materializou um velho sonho de ter seu próprio veículo de jornalismo impresso. Antes disso, sua maior aventura editorial, nos anos 1970, fora ajudar na publicação do nanico mensal Posição, editado por Jô Amado. Nos anos 1980, passou por um bom aprendizado político como diretor da Federação Nacional dos Jornalistas, sob a presidência de Washington Tadeu de Melo. Na gestão seguinte, concorreu a presidente da Fenaj, mas foi derrotado por Audálio Dantas.

Ex-correspondente do Jornal do Brasil e ex-repórter do Estadão, Rogério Medeiros vinha de uma extenuante experiência política como pararraio do líder petista Vitor Buaiz, ex-prefeito de Vitória (1989-1992) e ex-governador capixaba (1995-1998), de quem foi vice-prefeito e secretário estadual da Fazenda. Fundador do PT nacional, desfiliou-se do partido para não ter de comer o pão sovado pelos militantes mais radicais do Espírito Santo. Sem partido desde meados dos anos 90, não teve alternativa senão voltar ao jornalismo.

Em 1999, seu primeiro ano de ‘descanso’, Medeiros andou escrevendo matérias especiais para o jornal A Gazeta, de Vitória, e até deu alguns passos como consultor de políticos com o novo governador, José Ignácio Ferreira (PMDB), que se perdeu ao lado de más companhias, mas não sossegou enquanto não colocou no ar uma nova publicação. Aos amigos e colegas falava constantemente em pegar o espírito do fim do século, a entrada do novo milênio. Por algum tempo, pairou no ar, como hipótese, um título genérico (Panorama) que jamais o entusiasmou. Naquele momento já circulava no país a Época, nova revista da Globo. Caiu então na mesa de reuniões o nome Século, sugerido pelo jornalista Stenka Calado, que apareceu de repente na área, disposto a encarar a empreitada.

Um grupo heterogêneo de colaboradores

Além de responder a um velho anseio íntimo de Rogério Medeiros, a revista Século atendia a cobranças de pessoas e organizações, sobretudo da área ambiental, na qual ele tinha fincado sua mais notória bandeira. Suas batalhas ecológicas começaram na época em que cobria todos os passos de Augusto Ruschi em defesa da mata atlântica e contra o plantio de eucalipto em terras capixabas. Como vice-prefeito de Vitória, ele peitou a estatal Cia. Vale do Rio Doce por poluir o ar da cidade com suas usinas siderúrgicas. Por desdenhar da punição, a empresa foi interditada por dias pelo governador Max Mauro (1991-1994), que entrou no jogo para ‘cobrar o pênalti’. Foi um belo gol do ambientalismo capixaba. Quase 20 anos depois, o céu de Vitória continua poluindo o futuro do turismo no Espírito Santo.

Temperada por uma sagacidade política fora do comum, a militância ecológica de Rogério Medeiros é fruto de variadas experiências pessoais. Criado entre Vitória e Conceição da Barra, ele viu a rápida e brutal devastação do norte do Espírito Santo entre o pós-II Guerra e os Anos JK. ‘De Linhares a São Mateus, a gente viajava na sombra da floresta’, disse ele, certa vez, ao recordar a densidade da mata atlântica nos quase 200 quilômetros da BR-101, entre os rios Doce e Cricaré.

Ao lado de Cyro Medeiros, o pai madeireiro, ele presenciou incontáveis derrubadas. Em companhia do folclorista Hermógenes Fonseca, o Harmojo (1908-1996), abraçou as demandas dos quilombolas. Junto com o temperamental Ruschi, concluiu que era preciso denunciar os riscos da destruição da mata atlântica. Como repórter do JB,conheceu os índios guaranis recém-chegados do Sul em busca da Terra Prometida no final dos anos 1960. Coitados, eles perderam o rumo – mas não a identidade – ao descobrir que aquelas terras esquecidas à beira de um rio em Aracruz estavam sendo legalizadas em nome da Aracruz Florestal. Já era veterano quando conheceu o madeireiro Rainor Greco (1926-2001), de quem se tornaria amigo depois de apresentá-lo ao mundo como ‘o assassino de 60 milhões de árvores’.

Responsável pela armação da pauta, por matérias históricas e por contatos publicitários preliminares com os potenciais anunciantes, o guru do Século logo viu que a sobrevivência do projeto editorial dependia também da criação de um site diário especializado na interpretação do noticiário. Para o bem e para o mal, ele havia reunido em torno de si um grupo heterogêneo de colaboradores, alguns veteranos, outros aprendizes, todos mais ou menos convictos de que o jornalismo digital teria mais futuro do que o que o impresso. Por insistência dos mais jovens, o Século assumiu uma face virtual cerca de dois meses do lançamento do primeiro número impresso. Nasceu assim o título Seculodiario.com.

‘Quem ouve os dois lados é a Justiça’

Em sua virada para o jornalismo digital, o Século apoiou-se no site www.capixabaonline.com, criado pelo empresário Atílio Gomes, mais conhecido como Nena B. Ele e Medeiros se davam bem, mas a proposta de uma parceria não avançou por falta de convergência ideológica. ‘Eu quero dar notícia!’, dizia Rogério, explicando porque não topava ser sócio de um portal eclético, dentro do qual o espaço jornalístico seria pequeno demais para um repórter em busca do tempo perdido.

Mesmo depois da suspensão da revista de papel, que não chegou a completar três anos de existência – ‘ela tinha mais prestígio do que leitores’, reconhece Medeiros –, a maioria dos trabalhadores dos sites Século e Capixabaonline continuou se encontrando diariamente no mesmo endereço original, um conjunto de salas num prédio da Enseada do Suá, em Vitória. É onde continua até hoje a sede do jornal que, contrariando 1001 prognósticos pessimistas e tantos outros desejos contrários, está festejando 1/10 do seu primeiro século de existência.

Por sua liderança, Rogério acabou reunindo em seu jornal eletrônico alguns dos melhores nomes da arte, da cultura e do jornalismo do Espírito Santo, entre eles Adilson Vilaça, Álvaro José Silva, Eustáquio Palhares, JR Mignone, Jeanne Bilich, José Maria Batista, Kleber Galveas, Lena Azevedo, Renato Pacheco, Rossini Amaral e Tavares Dias – alguns deles proscritos da imprensa capixaba. Até o deputado-verde Fernando Gabeira constou da lista de colaboradores no início da jornada. Também colaboraram José Casado (do Rio), Sylvio Costa (de Brasília) e Marcelo Netto (de Nova York). Com o tempo, a maioria dos colaboradores iniciais se retirou, abrindo espaço para outros, em maior número do que no começo.

Como se fosse a materialização de uma nova dimensão da imprensa nanica – que marcou época nos anos da ditadura militar –, o Século possui uma visão de esquerda sempre ligada na realidade capixaba, principalmente na região metropolitana, que abrange um terço da população do ES. Baseado no senso crítico do seu diretor, o site tem como alvos centrais a gestão do poder, do ambiente, da economia, da justiça e da segurança. ‘Nós buscamos a verdade dos fatos, mas sem essa de ouvir o outro lado’, diz o ex-petista Rogério Medeiros. Definitivamente, para ele, ‘quem ouve os dois lados é a Justiça’.

No ar, ‘antes do noticiário das TVs’

Entre repórteres, colunistas e pessoal da administração, do comercial e da informática, o Século mobiliza cerca de 30 pessoas. O braço direito de Medeiros é o pernambucarioca Stenka Calado, 70 anos, que começou como repórter em junho de 1958, no Rio. Ele se mudou para Vitória especialmente para trabalhar com o amigo Rogério, cuja contratação, pelo Estadão, recomendara em 1974. Não só batizou o veículo como criou o projeto gráfico original com a ajuda do filho, Vladimir Calado, artista gráfico hoje baseado no Rio. Fazendo jus ao sobrenome, Calado escreve os editoriais e revisa todas as matérias. ‘Nós fazemos o jornalismo interpretativo, orientado pelo interesse público’, diz ele, que continua magro como na época em que percorria o Rio de ônibus, a serviço do fugaz Imprensa Popular, o jornal do Partido Comunista Brasileiro (veja depoimento no final deste texto).

Como a pauta é reduzida, bastam poucos repórteres para dar conta das tarefas diárias. Os mais exigidos são Manaira Medeiros, que escreve sobre meio ambiente e assina a coluna Socioeconômicas; Renata Oliveira, repórter política; Nerter Samora, que cobre economia e justiça; e Flavia Bernardes, que se tornou especialista em direitos de minorias, principalmente índios e quilombolas. Estes e outros, inclusive estagiários e voluntários, começaram andando de ônibus atrás de notícias em Vitória, até se convencer de que não fazia sentido correr para ‘furar’ os sites emergentes da imprensa tradicional. A saída foi enfocar criticamente o noticiário, até porque nenhum repórter do Século, com exceção de Rogério Medeiros, tinha acesso a fontes oficiais.

Além disso, o pessoal do jornalismo demorou a encontrar bom entendimento com a turma da informática, que não se contentava em repetir diariamente o mesmo formato. ‘Eles queriam mudar a cara do jornal a toda hora’, lembra Rogério Medeiros. A situação mudou há três anos com a contratação do editor geral José Rabelo, formado na área digital do Estadão. Como domina as duas ferramentas (informática e jornalismo), ele é o responsável por botar o jornal no ar todos os dias às quatro horas da tarde – ‘antes do noticiário das TVs’. Mesmo com tantas mudanças na cara do Século diário, a competência de seus informatas transparece na facilidade com que se acessa a memória do jornal eletrônico. A integral manutenção em arquivo do trabalho da equipe do Século prova que a impressão pode ser tarefa dos leitores.

Sem concessões aos poderosos

Além do trivial variado que constitui seu cardápio fixo, o site tem uma dúzia de colunistas com periodicidade variada – desde os diários até os quinzenais. Nos finais de semana, o Século capricha na agenda artística e cultural. Os assuntos mais polêmicos ao longo da história do Espírito Santo costumam ser transformados em dossiês que recheiam o rodapé do jornal. Algumas colunas começam a render livros. Em junho passado, saiu, pela Capital Cultural, do Rio, o livro Dilemas do Brasil Contemporâneo, do cientista político Antonio Carlos de Medeiros, que mantém uma coluna sobre a realidade brasileira. Irmão caçula de Rogério, ele fez doutorado na London School of Politics and Economics e trabalha como consultor no eixo Vitória-Brasília. No início de agosto, deve ser lançado o segundo livro da parceria Século-Capital Cultural. O tema, fartamente explorado pelos repórteres do site e sintetizado pela dupla Rogério Medeiros-Stenka Calado, é a corrupção do Judiciário capixaba.

Mesmo com uma equipe tão heterogênea, o Século mantém a cara de Rogério Medeiros, que além de dirigir o jornal atua como analista político e repórter policial com um pé na história. Fogem do padrão convencional suas reportagens sobre os pistoleiros do norte capixaba, a rapinagem da mata atlântica e a boemia na zona portuária de Vitória. São assuntos que renderiam livros se o autor não empenhasse todo o tempo em cultivar seu projeto e frequentar velhas fontes, sem medo de ser feliz. Entre seus mais recentes projetos, destacam-se um dossiê sobre a Conexão Esquadrão da Morte-Ditadura Militar e o Diário da Velha Prostituta (sobre A Grande Imprensa).

Sem dúvida, o que deu audiência e repercussão ao Século foi a guerrilha permanente contra os poderosos do Espírito Santo – especialmente o governador Paulo Hartung, o secretário da Segurança, os desembargadores e as grandes empresas exportadoras, especialmente a Aracruz (atual Fibria), a CST (Arcelor) e a Vale do Rio Doce, que faturam muito, recolhem poucos impostos e agridem o meio ambiente. Só da Aracruz, Medeiros sofreu 28 processos judiciais. De alguns já se safou, de outros continua se defendendo.

Se não fosse tão crítico, o Século contaria provavelmente com fartas verbas públicas e privadas para garantir sua sobrevivência, mas Rogério Medeiros faz questão de manter as onças capixabas sob vara curta. ‘Nossa credibilidade vem de não fazermos concessões aos poderosos‘, afirma. Ao governante que lhe propôs um cessar-fogo em troca de anúncios, ele mandou o seguinte recado: ‘Você acha que lutei a vida toda para acabar como chapa branca?!’

Os ‘princípios seculares’

O desaforo lhe custou caro. Casado com a médica Bete Madeira, no final de 2007 ele precisou submeter-se a uma cirurgia cardíaca em São Paulo. Parou por alguns meses, ensaiou passar adiante o comando do barco, mas voltou a navegar e até hoje continua no timão e no leme. Dos seus seis filhos, três (Manaira, Ricardo e Apoena) trabalham no jornal. Para manter o Século no ar em seu primeiro decênio de existência, ele perdeu o apartamento e acabou sem carro. Não lhe faltam caronas no território capixaba. Tudo indica que o velho repórter vai morrer em combate, distribuindo carinho e sarcasmo em doses desiguais, a voz rouca de tanto pregar no deserto, cabeleira e roupas totalmente brancas. Afável no trato e durão na escrita, Rogério Medeiros é hoje a maior figura do jornalismo capixaba.

Quase sempre em apuros financeiros, o Século precisa faturar atualmente R$ 55 mil mensais para pagar as contas, confiadas a Cyro Medeiros Filho, irmão do diretor-fundador. Os honorários da equipe seguem as bases do mercado capixaba, dominado por duas redes (A Gazeta e A Tribuna) com centenas de funcionários. A luta é desigual também na área comercial. Há anunciantes que desde o início se mantêm na telinha do Século, enquanto outros se revezam por temporadas. São órgãos públicos, sindicatos, empresas e até candidatos a cargos políticos nas épocas eleitorais. No momento, a maré está boa graças ao clima de fim de ciclo do governador Paulo Hartung (2003-2010), que dominou o panorama político capixaba na última década. A partir das eleições de 3 de outubro de 2010, quando será eleito o sucessor do ‘imperador’ Hartung, a direção do Século acredita em dias ainda melhores, tanto no aspecto jornalístico quanto publicitário. ‘O pós-Hartung vai ser muito rico’, vaticina Rogério Medeiros, animado com as perspectivas abertas pela ascensão de novos nomes à cena política.

A esperança vem com ressalvas. À sua equipe, o guru do Século costuma repetir que no jornalismo ninguém vive folgado ou fica rico. Além do pão de cada dia e da eventual moqueca de final de semana, o que se busca numa redação é um mínimo de satisfação profissional e a sensação de estar fazendo algo para construir uma sociedade melhor. Quem não estiver de acordo com os ‘princípios seculares’, deve procurar sua turma em outro lugar.

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Jornalista, Osório, RS