Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um dia na vida de um jornal

O dia é quinta-feira, 30 de outubro de 2008. Mas podia ser qualquer outro. Nessa quinta, o desprezo da Folha de S.Paulo pelos seus leitores superou-se com a reportagem ‘Luz para Todos não cumpre a meta de dois milhões’. Minha mulher, que já vinha se aborrecendo com a Folha, fechou as páginas, irritada: ‘Esse jornal pensa que somos idiotas’.


Começa pela foto que encima a história, uma cena de escuridão no Congresso Nacional, que não tem nada nadinha a ver com o programa Luz para Todos. Depois vem o título, enorme, em quatro colunas, numa página nobre do jornal, chamando de fracassado um programa que os números da reportagem revelam estar sendo um dos maiores sucessos do governo Lula.


O Luz para Todos atingiu até a semana anterior à publicação da matéria, nada menos que 1, 744 milhão de famílias. São famílias, por definição, localizadas em regiões remotas, pequenos vilarejos que as concessionárias não serviam por não ser econômico.


Mesmo se ficasse só nisso, já seria um feito excepcional. Não só pelo número absoluto de famílias e comunidades beneficiadas, mas também pelo fato de quase 90% da meta ter sido alcançada – meta essa que já era bastante ambiciosa.


Foi tão forte o desejo de narrar um fracasso que o repórter excluiu do seu argumento sobre o não cumprimento da meta deste ano o fato relevante de que o ano ainda não terminou. Só lá em baixo, no pé da reportagem, separadas propositalmente do argumento principal da narrativa, está a informação de que já há mais R$ 13 bilhões em contratos fechados, sendo R$ 9,4 bilhões do governo federal, R$ 6,2 bilhões dos governos estaduais e R$ 1,9 bilhão das concessionárias. O sucesso é tanto que o Ministério de Minas e Energia já pensa em ampliar a meta em mais 1,1 milhão de famílias entre 2009 e 2010. [No dia seguinte, a Folha voltou ao assunto em pequena nota na qual a ministra Dilma Rousseff, diz que faltarão apenas 100 mil famílias para a meta deste ano. Ou seja o programa terá cumprido 95% de sua meta. Mesmo assim, o jornal manteve a narrativa do fracasso.]


Ajuste sazonal


Na mesma edição, a Folha relata outro retumbante ‘fracasso’ do governo Lula. ‘Gastos do governo com o PAC caem 70%’. O título é de quatro colunas ocupando também o topo de página. Um gráfico de pagamentos do PAC revela investimentos crescentes ao longo do ano, exceto pequena redução em junho, e as quedas que deveriam justificar o título, em setembro e outubro.


De pronto está a desonestidade do título. Gastos só caíram nos últimos dois meses. E mais: caíram de forma brusca. A explicação está lá, escondida, no meio da própria reportagem: as chuvas de setembro e a greve dos servidores do Departamento Nacional de Infra-estrutura (DNIT) que ‘bloqueou pagamentos e todas as demais fases da gastos durante três semanas…’ [Também nesse caso a Folha voltou ao assunto no dia seguinte com o titulo: ‘Planalto culpa greves por ritmo menor de obras.’ O jornal não contesta o argumento. Ao contrário, reforça-o dizendo que ‘conforme o jornal informou ontem, a greve de três semanas no DNIT paralisou todas as etapas dos gastos em obras de conservação, manutenção e construção de rodovias, responsáveis pela maior parcela dos investimentos do PAC.’] Um título mais preciso seria na linha de ‘greve paralisa obras do PAC’. Mas esse título não serviria ao propósito aparente de retratar um governo inoperante e incompetente.


Manipulação de números repetiu-se no título de página inteira ‘Diminuem as vendas em supermercados’. O segundo parágrafo, aliás atropelado, diz que ‘a queda nas vendas em setembro, além de ser sazonal, ocorreu porque, em agosto, houve queda nos preços de alguns alimentos, o que resultou em alta no consumo daquele mês…’


Afinal, se em agosto os preços caíram, significa que o povo estocou, com isso comprando menos em setembro? Além dessa confusão, o jornal admite que comparou dois meses incomparáveis. Agosto teve 31 dias e cinco fins de semana. Setembro teve apenas 30 dias e quatro fins de semana. Os fins de semana concentram as idas aos supermercados para as compras maiores do mês.


Só o ajuste sazonal do número de dias de cada mês daria uma ‘diminuição’ de 2,2% no faturamento de setembro em relação a agosto. E mais: lá adiante, em outro parágrafo, está escrito que o preço médio de uma cesta com 35 produtos caiu 1,25% em setembro, em relação a agosto. E nem consideramos ainda que setembro teve um fim de semana a menos. Portanto a queda de 5,6% no faturamento foi inferior ao que se deveria esperar pelo menor número de dias, menor número de fins de semana, e preços menores dos alimentos. O oposto do que o título dá a entender.


Torcida pela crise


É isso que se chama inversão dos sentidos, truque que vem se tornando especialidade desse jornal. Na história do Luz para Todos o objetivo aparente é passar a idéia de um governo que não cumpre promessas e na reportagem da redução do ritmo do PAC, o objetivo é caracterizar um governo incompetente.


Há uma outra dimensão ainda mais interessante nessas manipulações: as duas reportagens saíram na véspera do evento em que o governo prestaria contas dos programas, quando o correto seria usar as informações para questionar a prestação de contas, não deixar o governo falando sozinho. Isso seria bom jornalismo. Por que o jornal se antecipou? Sua intenção aparente e nada modesta foi a de esvaziar a prestação de contas do governo. Ou seja: o jornal quis pautar a agenda nacional e/ou negar ao governo seu potencial de pautar essa agenda.


O jornal torce os fatos porque está torcendo pelos fatos, em vez de tentar retratá-los com a maior precisão e contextualização possível. A matéria do PAC é mais uma de toda uma torcida do jornal contra o programa, desde o seu início.


Já a reportagem sugerindo falsamente que o povo está comprando menos comida, além de usar como referência um dado (faturamento) que interessa apenas aos proprietários dos supermercados, faz parte de uma nova e preocupante torcida da Folha: a torcida para que a crise dos bancos chegue logo ao Brasil. Esse catastrofismo vem marcando a cobertura de toda a mídia. Mas também nisso a Folha vem se superando.

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Jornalista, professor da Universidade de São Paulo e autor, entre outros, de Jornalistas e revolucionários – nos tempos da imprensa alternativa (1991), A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro (1996) e As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998 (2000).