Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Um elogio à hipocrisia

A fulanização do debate costuma simplificar e distorcer o seu teor e, principalmente, favorece a quebra de civilidade. O doutor Carlos Alberto Di Franco deveria sentar-se novamente no banco dos réus pelo texto que publicou na segunda-feira (3/5), no Estado de S.Paulo (pág. 2) e O Globo (pág. 7). Cuidemos, em vez disso, da primorosa peça que nos ofereceu.


Sob o título ‘A crise do jornalismo‘, trata dos pecados jornalísticos cometidos nesta última temporada de revelações sobre abusos sexuais cometidos por sacerdotes católicos. ‘A má qualidade da cobertura da pedofilia na Igreja é a ponta do iceberg de algo grave’ é o seu mote.


Como impera na imprensa brasileira um pacto de sigilo, fica difícil imaginar em que esfera o ilustre articulista localizou tantas heresias. Sua queixa talvez se relacione com a imprensa espanhola, já que artigo começa com um surpreendente elogio ao El País, um dos melhores jornais do mundo, aguerridamente anticlerical, que designa sem meias palavras, curto e grosso, os padres pedófilos de pederastas. Na Espanha, mais precisamente em Navarra, situa-se a alma mater do articulista, prócer da Opus Dei, prelazia que nas últimas décadas estabeleceu no Brasil a mais nefasta submissão da imprensa a interesses políticos desde o fim da ditadura.


Manipulação sistemática


O território inspirador da ladainha é certamente a honestíssima e espiritualíssima Itália, onde ‘num período de várias décadas, apenas 100 sacerdotes foram denunciados e condenados [por abusos sexuais] enquanto 6 mil professores de educação física sofriam condenação pelo mesmo delito’. Estes 6 mil professores pedófilos devem ser eleitores de Berlusconi que até hoje não foi derrubado do poder porque é apoiado pelo Vaticano.


Da Itália nosso sermonista passa à Alemanha, onde aponta o registro de 210 mil denúncias de abusos sexuais desde 1995, dos quais apenas 300 relacionavam-se com o clero – menos de 0,2%. Este delírio numerológico é apresentado sem qualquer fonte ou referência, no chutômetro, contrariando não apenas o que os veículos mais responsáveis da imprensa mundial publicaram, mas, sobretudo, as próprias admissões de culpa das autoridades eclesiásticas da Europa e Estados Unidos.


Ao longo desta abalizada análise do jornalismo contemporâneo não há qualquer menção à manipulação sistemática do noticiário por instituições, empresas, partidos e corporações próximas à igreja católica. Como se a Opus Dei não tivesse a menor força na Península Ibérica, na América Latina e especialmente no Brasil.


O mais grave


No parágrafo final, o texto faz a apologia de ‘processos eficientes de controle de qualidade da informação’. Onde será que ouvimos esta pregação – em algum discurso de Goebbels, nas doutrinas dos comissários bolcheviques ou é uma invenção do cursilho Master por onde passam os jornalistas que em breve serão os porteiros das nossas redações?


Por acaso foi este ‘eficiente controle de qualidade’ o responsável pelo abafamento durante cinco semanas do escabroso caso do monsenhor que abusava dos coroinhas em Arapiraca? Por que só agora, mais de um mês depois, é permitido ao leitor brasileiro saber que o Vaticano considera como delinqüente, sem escrúpulos, o sacerdote mexicano Marcial Maciel, criador da ordem da Legião de Cristo?


Este jornalismo mafioso é insignificante, esta crise no jornalismo é irrelevante. Mais grave é perceber que O Globo e o Estadão, apesar do elenco de brilhantes, experimentados e articulados profissionais de imprensa preferem publicar um lixão hipócrita destas proporções.


 


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