A leitura dos jornais, este hábito cultivado ao longo de alguns séculos – inicialmente por intelectuais e literatos e depois por pessoas comuns –, começa a assumir contornos de algo que os franceses chamariam démodé. Aquela prazerosa sensação de ler o jornal no café da manhã, imagem fixamente gravada em nossa memória ocidental, reproduzida de forma intermitente como hábito de uma vida doméstica feliz, saudável e serena, vem sendo rapidamente substituído por um novo hábito, em que não muda o horário e o lugar, ou seja, permanece sendo o mesmo ambiente doméstico e é ainda na primeira refeição do dia, o café da manhã, mas muda o meio lido, deixa de ser papel e tinta para ser tela de cristal líquido (LCD) apresentada na forma de computador portátil (note e netbook) e em tablet.
É uma mudança e tanto! Antes, recebíamos em casa, como assinantes, um ou no máximo dois jornais diários, e hoje, quase por um passe de mágica, recebemos diversidade impressionante de jornais. Podemos acessar e depois ler, jornais por ordem de importância, começando com o espanhol El País, passando para o norte-americano The New York Times, o francês Le Monde e depois, nos contentaremos em conferir as notícias estampadas nas primeiras páginas dos brasileiros Folha de S.Paulo, O Globo e O Estado de S. Paulo. Se temos especial deferência para os esportes, para o futebol em particular, o primeiro a ser buscado é o argentino Olé. Mas, com tamanha carga de opções de leitura, ficamos como aquele comensal acostumado nos restaurantes a pedir à la carte para se contentar com aquela extensa exposição de pratos, tão típico dos populares restaurantes de comida a quilo, os antes conhecidos como buffet. O prato a la carte, além do preço sempre mais salgado, tem seus segredos, tem tempero mais apurado ao paladar e melhor apresentação visual. O prato feito na hora, por seu preço sempre mais em conta, fica a dever em termos de sabor; comida que é feita em larga escala sempre será convite à quantidade e não à qualidade dos alimentos, ao apuro com que deveriam ser preparados.
A visão tacanha do editorialista
O mesmo ocorre com a leitura de jornais. Ah, como era bom receber a assinatura do Jornal do Brasil em seus tempos áureos, os anos 1970/1980, e poder apreciar seu design, a distribuição das notícias, os frisos (ou sua total ausência), a ilustração (charge) do dia, o articulista favorito, antes mesmo de decidir por onde começar a leitura. Hoje esse hábito conserva certo aroma de naftalina. Parece que estou rememorando passado distante, algo mais próximo de Gutenberg, o inventor do tipógrafo, e não o tempo presente, contemporâneo de Steve Jobs, Bill Gates. Mas não é. O maior impacto termina sendo visual: os jornais são cada vez mais parcimoniosos no espaço para texto e muito perdulários em dedicar espaço para imagens, fotografias, infográficos, ilustrações em geral. O texto mesmo já começa a pedir desculpas por ocupar ínfimo espaço que poderia ser facilmente substituído por aquilo que “vale mais que mil palavras”, ou seja, “uma única fotografia”. Sentimos uma certa saudade de uma informação mais aprofundada, analítica.
Um rápido balanço do hábito de leitura de jornais antes e agora nos faz perceber que cada edição impressa é cada vez mais editorializada, que o jornalismo opinativo veio para ficar, que o jornalismo informativo vive seu dias de refluxo. Os editoriais esparramam-se de forma onipresente ao longo de toda a edição, primeiro por seu espaço cativo, como lugar de fala com a opinião do dono do jornal, e depois, através de seus colunistas fixos e de colaboradores convidados, mas com periodicidade fixa (semanal, quinzenal, mensal). Todos buscam reverberar, de uma forma ou de outra, a opinião esboçada no editorial. E se um editorial desanda a condenar o sistema de saúde do município de São Paulo é quase certo que um ou mais colunistas enveredarão pelo caminho. Se o dono de um jornal considera que o Brasil não teve ditadura tão feroz quanto suas similares chilena ou argentina, será recorrente encontrar mais textos de opinião referendando tão torpe ideia. E mesmo que, em nosso caso, o substantivo ditadura pareça soar inadequado na visão tacanha do responsável pelo “cometimento” do editorial, seja por não expressar a contento a verdade histórica, factual, esposada pelo veículo de comunicação, não tarda para que se crie novo vocábulo, nascendo assim uma palatável ditabranda. E que só é ditabranda para aqueles que não tiveram seus filhos e filhas torturados, assassinados ou simplesmente “desaparecidos” pelas forças repressivas, única maneira de se manter qualquer estado de exceção.
Valores antigos e permanentes
Vivemos no império das opiniões. E estas sempre são monocórdias, autorreferentes, avessas à pluralidade de pensamento, resistentes ao que é, de algum jeito, diferente.
Nenhum jornal sobreviverá se não se abrir de cabo a rabo e de corpo e alma à multiplicidade de visões de mundo, à diversidade de opiniões. Porque o mundo não pode mais ser lido do início para o fim, nem de cima para baixo. A leitura do mundo tem que encontrar sua pedra de toque na leitura dos meios impressos e para que isso seja alcançado há que contemplar a rica diversidade humana, com sua miríade de nuances, percepções, sempre para além de qualquer ideologia dominante e de qualquer pensamento limitador da experiência humana que, em última análise, é tão somente fruído através do ato de pensar. Nesse contexto, há que se lacrar toda forma de reducionismo, como esse que almeja expressar postulados de direita ou ideias clássicas de esquerda. No mundo atual, ainda existe esquerda e direita? Ainda fazem algum sentido tais expressões? A resposta é um retumbante não. Basta ver a barafunda em que estão os partidos políticos, sejam do Brasil, da França ou do Uzbequistão: nenhum tem qualquer traço de coerência ideológica. E se tem ideologia não tem coerência, se tem coerência não tem ideologia. Ora, os governos se alternam entre os que antes se chamavam socialistas e os que se conheciam como liberais e neoliberais.
Com a queda do muro de Berlim, em novembro de 1989, decretou-se a fim da utopia socialista e sagrou-se vencedor dos mais estéril dos debates humanos, nada menos que sistema capitalista. E com este, o endeusamento do materialismo, a negação da solidariedade como característica da sociedade humana e o individualismo competitivo levado às últimas e mais trágicas consequências. Mas com a hecatombe econômica da Europa e dos Estados Unidos em setembro de 2008, os mesmos que foram apressados em decretar o próprio fim da história com aquele muro em Berlim, continuam relutantes em decretar a inviabilidade do sistema capitalista, uma vez que este se funda no acirramento do egoísmo humano, na exaustão dos recursos naturais do planeta e no padrão alarmantemente enraizado de injustiça contra formidáveis 2/3 da humanidade.
Os protagonistas mudam, mas todos têm que lutar por valores antigos e permanentes como os que sinalizam a busca por justiça social, a liberdade de pensamento e, também, o estado de direito e de bem-estar social.
Com fartura
Não deveriam os meios impressos ser os primeiros a estampar em suas páginas que a realidade… mudou de eixo? Ou, será seu desejo morrer por inanição, se enforcando na persistente corda da teimosia míope que endeusa uma só visão de mundo em detrimento de milhares de outras possíveis?
Poucas vezes um poeta foi tão feliz ao tratar da questão humana quanto Ferreira Gullar ao escrever que
“Uma parte de mim é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.
uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza
e solidão.
Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira (…)”
Atrevo-me a afirmar que sobreviverão apenas os meios impressos que espelharem em suas páginas o mundo que desses versos luta por nascer. Sim, os impressos nos devem esse contínuo “traduzir-se”. Tradução esta, diga-se, feita com fartura e a todo e qualquer momento nos meios digitais…
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[Washington Araújo é mestre em Comunicação pela UnB e escritor; criou o blog Cidadão do Mundo; seu twitter]