É comum em tempos tão extremos como os nossos que se perca um pouco a nitidez de certos parâmetros. No contexto da política nacional, poucas vezes estivemos tão polarizados e isso tem quase que obrigado as pessoas a escolher um lado em detrimento do outro. Nas esquinas, nas rodas de conversa, nas redes sociais, as discussões parecem cada vez mais maniqueístas e a disposição para ouvir o interlocutor é quase nenhuma. O que parecia um ambiente de fúria – limitado aos grupos sociais que frequentamos – ganha dimensões de atmosfera de intolerância, cobrindo tudo, graças ao embarque igualmente irracional de muitos veículos de comunicação. A adesão da mídia contribui para a disseminação do discurso de ódio, promove linchamentos sociais e – pior! – alimenta uma espiral de desinformação geral.
É verdade que este comportamento não é um privilégio nacional, já que em outras latitudes a situação se mostra igualmente complicada. Na vizinha Argentina, não é só a imprensa que se divide entre kirchneristas e opositores, mas todo o país, provocando ranger de dentes do Chaco à Terra do Fogo. Por aqui, minha impressão é que estamos caminhando aceleradamente para uma zona explosiva, onde vigora o desentendimento e a absoluta radicalização. Nessa faixa, não existe apenas disputa de sentidos, mas imposição de narrativas, desqualificação de personagens, agressões ao pensamento alheio e total desrespeito ao outro. Três episódios recentes me levam a pensar que há um adiantado processo de deterioração de limites morais na mídia brasileira.
Verdade desnecessária
Em julho passado, a revista Veja publicou extratos que demonstrariam créditos de milhões de reais em um banco suíço em favor do senador Romário Faria (PSB-RJ). A prática se enquadraria em crime, já que brasileiros com contas no exterior cujos saldos superam os US$ 100 mil devem declarar e recolher impostos. Se a conta de Romário era secreta ou desconhecida pelo fisco, o político estaria incorrendo em ilegalidade. Mais um prato no banquete servido diariamente, recheado de denúncias de propinas e escândalos políticos e financeiros. Diz a matéria:
Quem o vê na tribuna do Senado, fustigando os cartolas do futebol com acusações de irregularidades e à frente de uma CPI sobre falcatruas na Confederação Brasileira de Futebol, se impressiona: Romário de Souza Faria, 49 anos, ídolo da seleção, firma-se cada vez mais na política com um vigoroso discurso em defesa da ética e da lisura. (…) Tamanha popularidade acaba por deixar na sombra uma flagrante incongruência entre o Romário senador e o Romário cidadão: na vida pessoal, o ex-jogador é notório por suas pendências financeiras. Uma delas está nas mãos do Ministério Público Federal: um extrato de uma conta bancária em nome de Romário no banco suíço BSI, com sede em Lugano, no valor de 2,1 milhões de francos suíços, o equivalente a 7,5 milhões de reais. A pequena fortuna não aparece na declaração oficial de bens encaminhada por Romário à Justiça Eleitoral em 2014.
No começo de agosto, Romário viajou a Genebra e lá colheu documentos que desmentiam o tal extrato. Veja não teve como rebater e reconheceu o erro:
Por ter publicado um documento falso como sendo verdadeiro, VEJA pede desculpas ao senador Romário e aos seus leitores.
É claro que alguém pode argumentar que foi um erro e que a publicação se retratou assim que detetou a falha. Mas é preciso ressaltar que a revista de maior prestígio e circulação do país publicou documento falsificado, sem a devida apuração, ignorando procedimentos mínimos no jornalismo: certificar-se da verdade da denúncia antes de propagá-la. Se isso acontece com um senador da república, o que esperar do tratamento ao cidadão comum, geralmente sem tais blindagens?
Um entre tantos, o Caso Romário sinaliza que a veracidade de documentos e a fidelidade aos fatos são detalhes pouco determinantes. Deve-se publicar a denúncia, não importando se ela é verdadeira.
Desqualificação pessoal
O assassinato de reputações se serve de outras estratégias. Na edição de 14 de agosto, a revista Isto É estampou na capa a denúncia com os “maiores indícios da propina do Petrolão nas campanhas de Dilma”. Sob o título “Conexão Cerveja”, trazia foto do ex-presidente Lula tomando um copo de cerveja enquanto discursava na inauguração de uma fábrica da Itaipava em Pernambuco. Ao lado, fotos menores do empresário Walter Faria, dono da cervejaria, e da presidente Dilma Rousseff, e a informação de que a revista havia obtido documentos que comprovavam tráfico de influência, recebimento de propinas e repasses às contas da candidata.
No interior, Isto É apresentava as “provas” da aproximação do cervejeiro com Lula e o esquema de doações fraudulentas. Na capa, a figura do ex-presidente com um copo na mão reverbera a ideia já muito disseminada de que Lula bebe demais. A foto ressuscita no imaginário coletivo o perfil do político que se move à base de álcool e, que portanto, não está com consciência e sentidos plenos.
É claro que alguém pode argumentar que os editores quiseram ilustrar a conexão entre o ramo cervejeiro e a política com uma imagem real capturada em abril passado. Não houve montagem ou retoques. Mas é preciso ressaltar que uma revista com quase quarenta anos de existência lançou mão de um recurso primário de desqualificação pessoal, contribuindo para a deterioração de sua imagem. Carimbar Lula bebendo na capa é como tatuar nas mentes dos leitores a imagem de um homem vencido pelo álcool. O ataque à reputação se dá pelo seu lado moral mais pérfido. O subtexto é de crítica ao alcoólico, ao bêbado, aquele que não se emenda, que bebe porque quer e que merece um mau julgamento social. Sua decadência é fruto da falta de fibra ou coragem. Sua queda é resultado da preguiça e da fraqueza.
Sob a justificativa de que denuncia um mal feito, Isto É dissemina um preconceito comum – o de que o dependente químico é responsável por sua condição e não a abandona por sua incapacidade pessoal. Mais que isso, Isto É reforça uma narrativa – ainda não comprovada – de que Lula bebe demais e que isso compromete suas ações. Num único gesto, a revista desqualifica um personagem da vida nacional, faz ilações sobre sua saúde (e caráter!) e o vincula a esquemas criminosos com base em “indícios”, como a própria publicação admite.
O Caso Lula mostra que, para parte da mídia nacional, não se deve apenas fazer denúncias precárias, mas é preciso ainda enxovalhar a vida pessoal dos envolvidos.
Desrespeito contumaz
O longo e contínuo processo de deterioração moral de alguns nomes na mídia teve outro caso esta semana. Um dos editores da revista Época, João Luiz Vieira, tomou como base a vida sexual da presidente da república para comentar a crise política atual. O texto publicado na manhã de 20 de agosto no site da revista causou reações indignadas na internet e foi despublicado em seguida, sem qualquer justificativa.
A tese de Vieira é que Dilma Rousseff deve se “erotizar”, reavivar o encantamento com os eleitores para que siga adiante. Embora argumente que não está pedindo que ela use “mais decotes ou fendas” e que não está falando de sexo, o autor assina uma coluna que trata justamente desse mundo.
Em tom falsamente ambíguo, Vieira afirma que “sexo tem a ver com poder”, e que o “erotismo é um princípio”, aliás, “um princípio, um meio, um fim”. Na sequência, de forma indelicada, menciona a idade de Dilma, seus casamentos, a idade da filha e a informação de que seu neto de 4 anos é “supostamente seu melhor amigo”, traçando claramente o perfil de uma mulher assexuada, solitária e, portanto, infeliz.
Não a conheço pessoalmente, nem sei de ninguém que a viu nua, mas é bem provável que sua sexualidade tenha sido subtraída há pelo menos uma década (…) Será que Dilma devaneia, sente falta de alguém para preencher a solidão que o poder provoca em noites insones? Será que ela não se ressente de um ser humano para declarar que quer mandar todo mundo para aquele lugar, afinal ela não tem como dizer isso para o neto, supostamente seu melhor amigo, que ainda nem sabe ler? Será que ela não sente falta de comer pipoca enquanto assiste suas séries de TV paga, que tanto ama e a faz relaxar das pressões inerentes ao cargo? (…) Dilma é de uma geração de mulheres anti-Jane Fonda, que acreditam que a sexualidade termina antes mesmo dos 60 anos, depois de criados filhos e ter tido seus netos.
Para Vieira, a presidente “criou uma personagem para lidar com a rudeza de seu ofício”, que “quer ser invisível”, e por isso usa “um uniforme que nubla sua sexualidade”. No diagnóstico do especialista em educação sexual, é um erro, daí que aconselha Dilma: “Erotize-se”.
É claro que alguém pode argumentar que o artigo é ousado, original e inteligente, e que estamos em plena democracia sendo a liberdade de expressão a sua face mais visível. Mas há armadilhas nesse raciocínio. O artigo de João Luiz Vieira não é ousado, é desrespeitoso. Trata de um aspecto da vida íntima que é irrelevante para a imensa maioria das pessoas. Mas Dilma é uma pessoa pública! Sim, mas mesmo os mais célebres têm direito a seus círculos de intimidade. O texto em questão é desses artifícios narrativos preenchidos por vácuo. Não existe fato, episódio ou informação alguma que lhe dê sustentação. Parece faltar assunto. O que é que nos leva a falar da vida sexual de uma presidente em meio a graves crises política e econômica, diante da total discrição da personagem e na ausência de qualquer escândalo sexual?
O artigo de Vieira é desrespeitoso também porque impinge a Dilma a marca da mal-amada, da mulher mal humorada porque não está satisfeita na sua intimidade. Se Lula tem problemas com bebida, ela tem problemas com sexo. E, na ótica de Vieira, sexo é a raiz de todos os problemas e também a sua solução. Se aos bêbados resta o julgamento pela sua incapacidade de deixar o copo, às assexuadas, fica o sentimento de que devem curar suas próprias feridas. A estratégia é a deterioração moral pelo lado mais rasteiro. Dilma não dá tesão em ninguém! Anódina no âmbito sexual, também se mostra assim no campo político, e – portanto – merece condenação e desprezo. A condenação pode vir na forma dos adesivos colados à boca dos tanques de combustível dos carros. A cada abastecimento, o eleitor perpetra simbolicamente o que acredita ser vingança. Ato calcado na violência sexual, mas que é tido como legítimo porque se encarrega de fazer justiça na base do revide. Assim, a mal-amada merece a violência sexual…
Por sua vez, o desprezo à mulher assexuada fervilha no imaginário popular. Afinal, num mundo como o nosso com corpos libidinosos desfilando, com linguagem insinuante, e com a ideia de que o sexo é um fim em si mesmo, onde já se viu alguém não querer fazer sexo?
Mas o artigo de Vieira também não é original. A vizinha Cristina Kirchner já teve tratamento indigno semelhante anos atrás. Em 2013, a revista Noticias de la Semana já apresentou a presidente argentina numa montagem fotográfica em que aparece sem roupas – com a chamada “A rainha está nua”.
Em outra edição, em 2012, aborda “o exercício do poder e o contato com a massa como fatores erotizantes”, trazendo-a num desenho provocante: “O gozo de Cristina”.
Grosseiro, desrespeitoso, não original e não inteligente, o artigo de Vieira em Época é também machista. Afinal, aproxima política de sexo apenas no caso de Dilma. Mas e a vida sexual de homens da política? Por que não tratou delas? Desafio o autor a falar da vida íntima do presidente do Supremo Tribunal Federal, chefe do Poder Judiciário, por exemplo. Ou ainda de impotência de parlamentares, do priapismo de outros, de hábitos incomuns, e de insatisfação dos engravatados…
Até onde?
Os três casos mencionados são recentes e protagonizados pelas três maiores revistas semanais de informação do país. Se por um lado é ingenuidade pensar que haja coincidência, por outro é arrepiante imaginar que esteja em curso uma ação coordenada de desqualificação e erosão moral dos personagens citados.
Não se trata de puritanismo, moralismo de sarjeta ou caretice. O que estou a apontar é que alguns veículos de comunicação têm se prestado a oferecer conteúdos pretensamente embalados em jornalismo, quando na verdade não passam de ataques à reputação e à honra de alguns políticos. O tratamento dado é degradante, aviltante e corrosivo. Muito distante da preocupação de fiscalizar os poderes, de monitorar seus atos e de denunciar abusos. Sim, o jornalismo não deve transigir nesta atividade, mas vigiar é uma coisa, atacar ostensivamente é outra bem diferente. Onde começa uma coisa e termina a outra? Todos numa redação sabem. Todos.
Observo que estamos vivendo tempos extremos em que falta decoro, recato e respeito. Sem qualquer pudor, repórteres atropelam reputações e esmagam todas as possibilidades de redenção sob o argumento de que estão sendo duros com os políticos. Recorrem a mentiras, a preconceitos, a ideias autoritárias e discriminatórias. Fazem insinuações, armam-se de provas questionáveis para fazer acusações e estabelecem conexões estapafúrdias entre crimes e os que consideram indesejáveis. Os limites para uma ação jornalisticamente responsável são vistos apenas pelo retrovisor, e parece que perderam a vergonha.
Não a vergonha como castidade, a timidez que nos faz corar diante de alguém, ou a pudicícia que nos acanha. Não falo do bom mocismo, mas de um traço do caráter, da vergonha como responsabilidade, aquilo que nos sinaliza limites. Porque todos precisamos deles, caso contrário, ferimos, ofendemos, oprimimos e matamos.
Este jornalismo sem-vergonha, processado nos esgotos da alma humana e servindo aos propósitos do mero ataque, promove uma desintegração social difícil de reconciliação. É isso que alimenta a naturalização de práticas como a homofobia, o racismo e o machismo. Linchamentos de criminosos, banalização da violência urbana, estupros e o desejo de extermínio dos diferentes tornam-se aceitáveis porque se tornam familiares, após serem evocados com tanto descompromisso e ira. Cartazes lamentando que Dilma não tivesse sido enforcada no DOI-Codi, faixas ansiando pela morte de Lula e de outros – antes pensamentos inconfessados -, agora transbordam nas telas e nas páginas. Parte da mídia alimenta e dissemina esse ódio, ignorando a possibilidade de atuar como um elemento que ajude a aglutinar socialmente. O professor Clay Shirky, da New York University, tem uma definição bem luminosa sobre a mídia. Ela é o “tecido conjuntivo da sociedade”. Em tempos como os nossos, percebo que esse tecido não está sadio.
Para além dos males econômicos que o acometem, é possível ver também moléstias morais. Porque as redações parecem ter perdido a vergonha, seus profissionais promovem massacres diários da honra alheia. Outro professor estrangeiro, o filósofo ganense Kwane Anthony Appiah, de Princeton, ensina que “ter honra é ter direito ao respeito”. Parte decisiva do jornalismo atual não renova seus compromissos com a informação apoiada em respeito às fontes e aos públicos. Por isso, o senador é jogado no mesmo balaio de sonegadores fiscais, o ex-presidente é um bêbado e a presidente da república uma mal-amada. Não é o esgarçamento das relações entre política e sociedade que tem produzido isso. É um afrouxamento moral das redações. Dá vergonha ver tanto jornalismo sem-vergonha por aí!
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Rogério Christofoletti é professor da UFSC e pesquisador do objETHOS