Sunday, 24 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Um mundo sem confidências

Muitos despachos diplomáticos, antes classificados como segredos de Estado e por isso protegidos por um tempo que ia de algumas décadas a meio século, agora vazaram pelo WikiLeaks. O impacto sobre a sociedade é grande e ainda não sabemos como é que o distinto público haverá de entender essas revelações.


‘Político mente muito’, eis um truísmo popular, não apenas partilhado e difundido por todos, mas também blindado a outras compreensões. A vida nos ensina que nem todos mentem muito, pois houve políticos que pagaram caro, às vezes com a própria vida, as convicções que tinham.


Por enquanto as virtudes do WikiLeaks, que são realmente factuais e mensuráveis, são muitas. Mas e os defeitos? Por exemplo: a turma de Julio Assange, o fundador da maior central de fofocas do mundo, por acaso examina os estragos que pode fazer uma informação que não foi comprovada?


Como animal


Semana passada, o WikiLeaks disse que a polícia britânica está convicta de que os assassinos da menina Madeleine foram seus pais! Pois é! Mas a mesma polícia tinha certeza de que o brasileiro Jean Charles era um perigoso terrorista e o executou com vários tiros na nuca. E ele, humilde trabalhador que tentava realizar seu sonho na Inglaterra, estava apenas indo para o trabalho.


E há um consenso mundial de que a polícia britânica é competente. Para tal mito, aliás, tem contribuído muito ao longo de décadas a própria literatura de língua inglesa. Entre outros, temos escritores como Conan Doyle com seu personagem solar, Sherlock Holmes, e Agatha Christie, com Hercule Poirot e Miss Marple, três detetives inteligentes, capazes de fazer aquilo que as forças policiais denonimam ‘serviço de inteligência’.


No Rio de Janeiro, devido aos feitos notáveis da polícia nos últimos meses, José Mariano Beltrame, o secretário de Segurança, deixou claro que a polícia venceu mais pelo método, a inteligência, do que pela força, a ajuda das Forças Armadas.


Nem falemos dos EUA, onde a terrível CIA, a central americana de inteligência, especializou-se durante décadas em assassinar políticos contrários aos EUA, incluindo chefes de Estado. Recentemente o governo George Bush (filho) invadiu o Iraque e executou na forca um chefe de Estado, sem contar os milhares de civis mortos, porque tinha certeza de que Saddam Hussein armazenava armas de destruição em massa.


Era tudo mentira. Saddam Hussein era um ditador detestável e sanguinário, mas os EUA não tinham o direito de mentir nem de matá-lo e a tantos civis. Ele poderia ter sido levado a uma corte internacional, ter direito à defesa, como todos têm, e não ser morto como um animal, como o foi, naquele simulacro de julgamento.


Trabalho de edição


Teremos mais novidades nos próximos dias. Quando escrevo esta coluna, o WikiLeaks diz que José Dirceu de Oliveira, o ex-ministro da Casa Civil do primeiro governo Lula, qualificava os sindicalistas como conservadores. Ao contrário dos clandestinos, sempre tiveram casa e carro próprios. Mas isso era segredo? Alguém tinha alguma dúvida de que o sindicalismo brasileiro há décadas tomou esse rumo? Em muitos sindicatos, os chefes, como os patrões, vivem bem, mas e os sindicalizados?


Em muitos casos, o WikiLeaks traz novidades! Em outros tantos, tautologias apenas. Tò autó, em grego, quer dizer ‘o mesmo’; e logía é ‘tratado’.WikiLeaks é um gigantesco tratado de coisas já sabidas ou imaginadas, mas bons editores, se tiverem o trabalho de ler muito, haverão de garimpar notícias verdadeiras e surpreendentes naquele caos.


Aguardemos o que farão os bons editores. Os leitores e a blogosfera precisam muito deles.

******

Escritor, doutor em Letras pela Universidade de São Paulo, professor, pró-reitor de Cultura e Extensão da Universidade Estácio de Sá, do Rio de Janeiro, autor de A Placenta e o Caixão, Avante, Soldados: Para Trás e Contos Reunidos (Editora LeYa); seus livros já foram premiados pelo MEC, Biblioteca Nacional e Casa de las Américas