É do jornalista e pesquisador espanhol Pascual Serrano a precisa anotação sobre a relevância dos meios de comunicação em nossos dias. Trata-se do “papel cada vez mais sofisticado e potente que os meios de comunicação adquiriram nas sociedades democráticas, onde a formação da opinião pública é um elemento essencial para o exercício do poder” (MORAES e.a., 2013).
Com efeito, na cena brasileira e na América Latina o poder da mídia (como indústria da informação e entretenimento) se sobrepôs, historicamente, aos chamados “poderes republicanos” (Executivo, Legislativo e Judiciário), de forma mais marcante nos últimos 20 anos. Na falta de uma oposição partidária, a imprensa como instituição ocupou esse “vácuo” sem o menor pudor. Convém recordar, para fins da reflexão que aqui propomos, a declaração de Maria Judith Brito, à época presidente da Associação Nacional de Jornais (ANJ) e executiva do grupo Folha de S.Paulo: “A liberdade de imprensa é um bem maior que não deve ser limitado. A esse direito geral, o contraponto é sempre a questão da responsabilidade dos meios de comunicação e, obviamente, esses meios de comunicação estão fazendo de fato a posição oposicionista deste país, já que a oposição está profundamente fragilizada. E esse papel de oposição, de investigação, sem dúvida nenhuma incomoda sobremaneira o governo” (jornal O Globo, ed. 18/03/2010, com grifos meus).
Para além de balizar o processo de formação da chamada “opinião pública”, qual a relevância da mídia jornalística, independente do suporte tecnológico, para as sociedades democráticas contemporâneas? A crise é do jornalismo ou de um determinado modelo de negócios (empresarial) tido como “única saída” de produzir e comercializar o produto notícia?
Tais questões suscitam uma resposta complexa. Antes de arriscar alguns apontamentos sobre esse tema mais vertical, retomo o caso do editorial-ultimato publicado pelo jornal Folha de S.Paulo (ed. 13/09/2015), intitulado “Última chance”. A repercussão entre leitores daquele jornal foi tema da coluna assinada pela ombudsman Vera Guimarães Martins, intitulada “Opinião pode ser ultimato?” (fonte: http://migre.me/rzLg6).
Opinião e ultimato
A jornalista avalia que no “jogo democrático” a “opinião” de um jornal com o espaço social da Folha se equivale à de qualquer cidadão comum, postando um blog pendurado numa plataforma qualquer… É a democracia dos desiguais, na melhor das hipóteses. Senão vejamos uma passagem do texto de Vera Guimarães: “Não se pode, contudo, pôr em dúvida o direito do jornal de defender as medidas em que acredita, tachando a sua publicação de chantagem ou intimidação, como fizeram alguns. Expor não é impor” (fonte citada). Para a ombudsman, “a manifestação, sem dúvida dura e contundente, é mais uma conclamação para a necessidade de medidas urgentes que retirem o país do impasse em que está metido e chama à responsabilidade cada um dos atores envolvidos, Congresso e sociedade inclusos” (idem).
Por lapso ou vício de visão, a jornalista e “advogada do leitor” da Folha de S.Paulo desconsidera a responsabilidade e o papel que a mídia tradicional têm no contexto da crise política e econômica por que passa o país. Reverberando com todo o seu peso político a inconformidade com o resultado eleitoral que reconduziu Dilma Rousseff a mais um período de governo, há longos 10 meses e picos, todas as baterias da mídia tradicional e seus perfis nas redes sociais foram colocados a serviço da oposição. Primeiro, o questionamento do resultado em si (sob alegação de ilicitude eleitoral, tese derrotada no Tribunal Superior Eleitoral, TSE); depois, a imposição de uma narrativa de crise política que alimentou e potencializou a crise econômica, cuja solução simples sempre foi o impeachment ou a renúncia, entre outras formas de encurtamento do segundo mandato de Dilma.
Ora, o sistema de mídia corporativo brasileiro tem como marca mais essencial o monopólio da opinião e da produção de informação, configurado num esquema altamente concentrado, erguido e mantido à sombra generosa do Estado – independente do partido e/ou coligação que ocupou o poder nos últimos 50 anos.
Os dados de recente pesquisa realizada pelo Coletivo Intervozes (ainda não publicada oficialmente) apenas confirmam essa hipótese. Com o apoio da Unesco, o Intervozes realizou estudo sobre o sistema de mídia brasileira à luz dos “Indicadores do Desenvolvimento da Mídia” sugeridos por aquela entidade multilateral – em parceria com o Laboratório de Políticas de Comunicação (UnB), o Núcleo de Estudos Transdisciplinares de Comunicação e Consciência (UFRJ) e a Rede Nacional de Observatórios de Imprensa (Renoi).
Não obstante a proibição do monopólio e oligopólio dos meios de comunicação, no texto da Constituição Federal de 1988, inexiste regulamentação dos artigos constitucionais específicos. Nem mesmo o Artigo 223, que trata da complementaridade dos sistemas privado, público e estatal, foi regulamentado por nenhum dos governos democráticos, nos últimos 20 anos. Ou seja, no cenário brasileiro, a ausência do Estado e de políticas públicas de comunicação deixou o sistema brasileiro de mídia totalmente à feição do mercado e seus mecanismos de monopolização da opinião.
Num mercado plenamente dominado pela televisão, em 2013, só para que o leitor tenha uma ideia, a TV aberta concentrou 68,95% (cerca de R$ 22,3 bilhões) das receitas movimentadas no mercado publicitário – só a Rede Globo concentrou 74% desses recursos. O estudo do Intervozes revela ainda que “embora apenas 10,9% dos municípios tenham geradoras de TV, por conta das retransmissoras e repetidoras, a TV aberta está presente em 95,11% dos municípios brasileiros”.
Qual a crise do jornalismo?
Retomemos as questões colocadas anteriormente para pensarmos no futuro do jornalismo na sociedade democrática contemporânea. Penso que é importante dizer de qual jornalismo estamos falando. Neste sentido, resgato a brilhante tese de doutorado do pesquisador e professor Felipe Simão Pontes (UEPG), que trata da teoria do jornalismo. Em síntese, Pontes escreve: “O jornalismo é uma forma de conhecimento cristalizado no singular. Mas não é o singular da certeza sensível. Ao jornalista não cabe a reprodução da realidade pura e simplesmente sem considerar analiticamente e criticamente quais mediações engendram o fato social, quais mediações condicionam as consequências desses fatos sociais e mobilizam o próprio fazer do jornalismo” (“Adelmo Genro Filho e a teoria do jornalismo no Brasil: uma análise crítica”, defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Sociologia Política da UFSC, fevereiro de 2015).
Concebendo o jornalismo como forma de conhecimento social, assentado na dimensão singular do mundo, que nos permite diariamente um mínimo de posicionamento sobre o fluxo interminável de fatos que compõem o real, podemos também afirmar que a crise não é do jornalismo, mas de um determinado modelo de negócios empresarial com fins de lucro.
Afinal, poderia indagar o/a leitora/a: por que eu preciso continuar pagando para receber notícias se, em tese, tenho tudo “de graça” via internet? Os jornais em papel se debatem para redescobrir um caminho, uma nova relevância pública; a televisão aberta se debate com a queda constante dos níveis de audiência – mensuração que lhes remunera comercialmente e permite às empresas o acesso a verbas publicitárias dos governos; o rádio resiste e se reinventa, usando a plataforma web para seguir servindo de excelente veículo público.
Apesar de reconhecer certa margem de simplificação, ao definir a crise como de “modelo de financiamento”, estamos refletindo num coletivo de pesquisadores da Universidade de Brasília (UnB), Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e do Instituto Superior de Comunicação (Iscom), à luz de alguns fatores combinados que levam a chamada “crise do jornalismo tradicional”.
Dentre estes, destacamos: a) o impacto das novas tecnologias sobre o processo de produção, encurtando o intervalo entre o acontecimento e sua divulgação; b) é evidente o descompasso entre a capacidade crítica dos leitores e/ou público e a corrosão da credibilidade do negócio privado jornalístico – dados da Pesquisa Brasileira de Mídia (PBM, 2015 – Acesse o estudo completo aqui: http://migre.me/rzLD6), do Ibope Inteligência indicam que “em valores médios, 52% disseram confiar sempre ou muitas vezes nas notícias da televisão, rádio, jornais e revistas, e 43% nos anúncios publicitários. Já em relação às mídias eletrônicas, em valores médios, 27% disseram confiar sempre ou muitas vezes nas notícias em sites, blogs e redes sociais, e 23% nas propagandas”; c) a descentralização dos meios de produção e canais de distribuição de conteúdos agrava o cenário para a mídia corporativa, não obstante a diferença do “poder de fala” ainda favor da velha mídia.
Urge que se discuta uma nova forma de governança para o Jornalismo, esta forma de conhecimento social indispensável à vida democrática. Nosso palpite se fundamenta na convicção de que o futuro da democracia passa pelo fortalecimento ou talvez a reinvenção do Jornalismo, cujo produto final seja a informação de qualidade, vista como bem público. Ou seja, “para que o jornalismo possa ser de fato independente e voltado ao interesse público e à democracia, precisa se desvincular da lógica de mercado que o transformou em produto a ser vendido, sobretudo nos últimos 150 anos. Além disso, precisa se fundamentar em uma relação horizontal e de confiança entre o público e os jornalistas” (MICK, e.a.).
Referências
MICK, Jacques; CHRISTOFOLETTI, Rogério; LIMA, Samuel; RIBEIRO, Angelo Augusto. Governança social para o novo jornalismo: Projeto de Pesquisa-Ação (Mimeo). Florianópolis, 2015.
MORAES, Dênis de; RAMONET, Ignacio; SERRANO, Pascual. Mídia, poder e contrapoder: da concentração monopólica e democratização da informação. São Paulo, Boitempo; Rio de Janeiro, Faperj: 2013.
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Samuel Lima é professor da UnB e pesquisador do Laboratório de Sociologia do Trabalho