O Globo tratou bem, na edição de domingo (14/12), a Feira de Inovação Social realizada há duas semanas pela Comissão Econômica para a América Latina e Caribe (Cepal), entidade ligada à ONU. O evento foi realizado na Universidade Antioquia, em Medellín, cidade que já foi a sede de um dos mais poderosos cartéis do comércio de cocaína do mundo. O jornal informa, em reportagem ampla e bem ilustrada, que cerca de 4.400 projetos já participaram do processo de seleção para a feira, que é patrocinada pela Fundação W. K. Kellog.
O enviado especial do jornal carioca, que viajou a convite da Cepal, fez um bom trabalho. Mas convém observar que duas semanas é muito tempo de gaveta. A reportagem deve ter ficado adormecida à espera de um buraco na página, o que remete a uma crítica que se faz comumente à imprensa: a de que ela não gosta de publicar boas notícias e evita distribuir elogios.
Mas há mais do que isso. A Feira de Inovação Social está relacionada ao movimento pela inclusão social de milhões de cidadãos latino-americanos que ainda seguem à margem do crescimento econômico. A imprensa costuma bordejar esse tema, e tem evitado levar a debate público os efeitos das políticas de interferências direta, por parte de governos, ONGs ou da iniciativa privada, na redução das perversidades sociais.
Resgate dos pobres
A Fundação Itaú Social já realizou três seminários internacionais sobre Avaliação Social de Projetos Sociais, demonstrando que os projetos de transferência direta de renda e outras iniciativas semelhantes produzem mudanças profundas nas comunidades pobres. Os números das políticas de inclusão social, que ajudaram a criar uma nova classe média em países como Brasil, Venezuela, Colômbia, México e outros vizinhos, deveriam justificar um interesse maior da imprensa nesses mecanismos que, pelas margens do movimento global de capitais, vai atuando na redução das mazelas do sistema econômico internacional.
O evento bem coberto pelo Globo foi realizado no contexto de uma avaliação feita pela Cepal e amplamente divulgada pelas agências internacionais de notícias no dia 9 de dezembro – portanto, depois da realização da Feira de Inovação Social. Esse relatório chegou a ser publicado nas edições online de vários jornais brasileiros, mas, até onde foi possível observar, nunca chegou às edições de papel.
E o que diz o estudo da Cepal? Simplesmente revela que o índice de pobreza caiu quase 1 ponto porcentual na América Latina e no Caribe, passando de 34,1% da população da região em 2007 para 33,2%. Esse total representa 182 milhões de pessoas, ainda um contingente explosivo de indivíduos colocados à margem das oportunidades de uma melhor qualidade de vida.
Entre 2002 e 2007, houve uma melhora cumulativa no panorama social, com a redução de 9,95% – cerca de 37 milhões – no número de pobres; e de 6,95% – 29 milhões – no total de pessoas vivendo abaixo da linha da pobreza. Uma vez que o relatório foi divulgado depois da realização da Feira de Inovação Social, fica difícil entender por que o Globo não fez menção a esses números.
O relatório da Cepal analisou os dados de 18 países e registra um leve retrocesso na promoção social dos indivíduos classificados na situação de ‘miséria’, ou ‘abaixo da linha da pobreza’. O documento se refere à ‘inflação de alimentos’ constatada no início de 2008 como a causa básica desse quadro, uma vez que o aumento no custo de alimentação tende a atingir mais fortemente a base da chamada pirâmide social.
Entre os países que registraram altas elevações nos preços de alimentos, mesmo antes da eclosão da crise financeira internacional, estão a Venezuela, Bolívia, Chile e Argentina, onde projetos sociais vinham acelerando o resgate dos mais pobres. México, Brasil e Peru, nessa ordem, foram os países latino-americanos e caribenhos que sofreram menores índices de inflação, no total da economia e nos alimentos.
Concentração e violência
O relatório da Cepal, associado aos resultados divulgados na Feira de Inovação Social e nos seminários sobre Avaliação Econômica de Projetos Sociais da Fundação Itaú, é um importante instrumento para qualquer análise sobre a eficácia das políticas econômicas adotadas na região. Mesmo que os jornais sejam ideologicamente adversários das políticas ‘bolivarianas’ ou ‘indigenistas’ adotadas por alguns governantes latino-americanos, é mau jornalismo esconder de seus leitores que tanto Evo Morales como Hugo Chávez têm conseguido reduzir a pobreza em seus países.
Em entrevista incluída pela BBC e outras agências de notícias – e publicada, repita-se, nos sites de alguns jornais brasileiros, mas escondida nas edições de papel – a coordenadora do estudo da Cepal declara, explicitamente, que ‘na Venezuela, apesar da alta da inflação de alimentos, a pobreza caiu devido aos programas sociais’. Há pouco o que dizer em favor de Hugo Chávez quanto às suas tentativas de perpetuar-se no governo e até mesmo com relação ao seu estilo conflituoso de governar, mas esconder essas informações oficiais de um organismo da ONU é manipular a opinião pública.
Da mesma forma, a análise da Cepal observa que o programa Bolsa Família – que a imprensa brasileira rejeitou desde o início, chamando de clientelismo – foi um dos maiores sucessos na estratégia de combate à pobreza.
O Panorama Social na América Latina e Caribe traz ainda estudos sobre os possíveis impactos da crise financeira internacional na região, observando que o Brasil é um dos países com melhores condições de passar pelas turbulências com poucos danos. Mais uma vez, os mais pobres e principalmente aqueles que trabalham sem garantias legais deverão ser mais afetados. Curiosamente, a Cepal prevê que a crise deverá ser mais forte nos países mais dependentes dos Estados Unidos do que naqueles que se afastaram da influência americana nos últimos anos.
O estudo aborda ainda os temas da concentração de renda e da violência juvenil, mas não há sinal de que os grandes jornais brasileiros estejam interessados em promover um debate honesto sobre essas questões. Clique aqui para conhecer o site da Cepal. Quem se interessar pode ler ali esse relatório e outras análises que ajudam a entender melhor a América Latina, porque, se depender dos jornais, o leitor vai ficar repetindo preconceitos e desinformação.
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Jornalista