São múltiplos os acontecimentos passíveis de serem associados ao projeto da modernidade. O ciclo das ‘grandes navegações’, a arte renascentista, a pesquisa científica e, enfim, tudo que, reunido, consolida o marco da primeira Revolução Industrial. Entretanto, uma – mais que qualquer outra – terá modificado substancialmente a organização da vida nas cidades: a imprensa. É ela que, primeiramente ainda tímida, na forma de folhetos, se constituiu num acontecimento de radical efeito modificador ao propiciar a circulação pública da informação em seu sentido amplo, independentemente de, à época, haver alta taxa de iletrados.
De um modo ou de outro, o registro impresso logo se tornava conteúdo oralizado, compensando por um lado o acesso restrito aos segmentos alfabetizados e, por outro, potencializando a própria deformação dos conteúdos, fenômeno típico da oralidade. Seja como for, à imprensa coube a tarefa de tornar o espaço público da cidade em tema e experiência tanto gregária quanto conflitiva.
É sob esse prisma que se pode creditar à atividade jornalística a profunda associação ao exercício da democracia e, aí sim, nesse sentido, a compreensão ampla acerca do que seja a defesa intransigente pela liberdade de expressão e, principalmente, de pensamento.
A imprensa na origem
É inegável que novos procedimentos para a veiculação de informações terão injetado no processo histórico ‘aceleração’ e ‘velocidade’ ao ritmo dos acontecimentos, a exemplo do que sinaliza o pensamento de Paul Virilio, notadamente em duas de suas obras (A arte de motor e Velocidade e política, ambas publicadas pela Estação Liberdade, em 1996).
O pulsar permanente da imprensa, para bem e para mal – afinal tudo tem sempre mais de uma face –, produziu novas impregnâncias subjetivas, ao dar visibilidade pública à vida como instância dramática. Algo que, particularmente, começara, no berço do Ocidente, com o teatro, foi capturado pela imprensa, o que também serviu para a própria expressão teatral e literária de desafio na procura por novas modelagens. A superação do romance picaresco é um exemplo dessa transformação.
Notas, notificações, notícias, entrevistas e, por fim, reportagens foram descortinando, passo a passo, o que antes estava confinado a ser cameral. Em síntese, a imprensa produziu um ‘distúrbio’ na relação entre o ‘instantâneo’ e o ‘eterno’, algo semelhante ao que, posteriormente, foi reforçado com a fotografia.
Passados séculos, a imprensa, na vida contemporânea, se apresenta com preocupantes sinais de deformação, perdendo progressivamente seu potencial quase exclusivo de efetiva intervenção na pólis. Na ânsia, talvez, de querer abarcar delirantemente a ‘totalidade do real’, parece caminhar na direção de um melancólico hábito diário de ‘registros’, destituídos de maiores conseqüências. Cada vez mais ‘midiática’, a prática jornalística se confunde com ‘palcos para exibições’.
O jornalismo que, na origem, forçou o teatro a reinventar-se está ameaçado de se fazer refém, ou seja, percebe-se acentuada tendência na fixação de um modelo centrado na ‘teatralização jornalística’ – situação agravada pela concorrência da mídia eletrônica, que, dotada de recursos mais afeitos à ‘teatralização’ e à ‘dramaticidade’ dos acontecimentos, intensifica o processo de ‘espetacularização’ da vida.
Na rota dessa indiferenciada prática, enfraquece-se a própria democracia como processo construtivo e realimentador da liberdade. A saída possível aponta para a inserção da criticidade nos veículos de comunicação, sob pena de o jornalismo amargar inexpressivo lugar. Mudança de mentalidade nas empresas jornalísticas não deve ser projeto adiado.
A imprensa, hoje
O formato vigente beira o esgotamento. Proposições destinadas a instalação de ‘conselhos’, ‘órgãos reguladores’, ou equivalentes, em nada alteram o quadro posto . A discussão dessa ordem serve para outros fins. Estes dizem respeito às funções reais das quais a atividade jornalística não pode prescindir.
Comissões e conselhos sempre interessam de perto a quem vislumbra oportunidades para ocupação de cargos, cujo objetivo, com as raríssimas exceções, é o uso estratégico, trampolim para outros ‘saltos ornamentais’ na vida pública ou profissional. Jornalismo não é ornamento.
Embora o enfraquecimento da atividade jornalística seja alvo de reconhecimento em âmbito internacional, há de se registrar que, no âmbito nacional, o fato em muito se amplia. É perceptível o grau de superficialidade das pautas e coberturas, em absoluta contramão das complexidades proliferantes tanto na esfera mundial quanto na vida brasileira. O tratamento no campo político chega a ser sofrível, seja pelos recortes de banalidade, seja pelo esforço na falsificação das situações internas.
Uma simples sintonia com a prática parlamentar, pelas TVs a cabo (Congresso, Senado e Alerj), demonstra do quanto o público majoritário fica radicalmente à margem. Os jornais do dia seguinte ignoram (ou ocultam) temas, denúncias da mais alta importância. Ao contrário, multiplica-se o enfoque de variedades que pouco ou nada acrescenta para além do tom meramente opinativo.
A parceria jornalismo/democracia, para a desejada consistência, tem de estar apoiada em forte densidade argumentativa. É sabido que a ‘cultura opinativa’ não cria raízes nem produz desdobramentos. Ela se confunde com a ‘falação cotidiana’. Opinião não passa da emissão de juízo, próprio da razão excitada. Seu suporte, portanto, é eminentemente emocional. Já o argumento é a formulação de juízo, afinada com a razão analítica, cuja substância é conceitual. Na vertente da opinião, vigora o modelo midiático; na prática argumentativa, deve predominar o modelo jornalístico. Muniz Sodré está corretísssimo quando acentua que jornalismo não é (ou não deveria ser) mídia.
O perigo maior da conversão do jornalismo em mídia reside na rede de dessubjetivação cuja conseqüência, entre outros efeitos, consiste na ativação de estados de vacuidade. A propósito do tema da relação entre dessubjetivação e realidade midiática, é oportuna a remetência à leitura de uma das obras do já citado Muniz Sodré – Antropológica do espelho (Vozes, 2002), em específico o item ‘Dessubjetivação e integração sistêmica’, págs. 158-167.
A fragilidade do presente modelo jornalístico, na sua obstinada estratégia contra a construção analítica, afora o desvirtuamento de sua originária destinação, potencializa a banalização da democracia na medida em que a relação com a experiência democrática passa a confundir-se com a atmosfera de emocionalização, processo adequado a deformações de toda ordem.
Ignorar o peso dessa responsabilidade significa colaborar para o esgarçamento de todos os laços constitutivos de uma nação.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (Facha, RJ)