Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Um surto de delirium tremens ou de má-fé

De todas as enormidades que os governistas disseram ou escreveram sobre a matéria de Rohter – incluíndo ‘Se fosse no Japão e um jornalista tivesse falado mal do imperador, também seria expulso’ (Luiz Gushiken, citado pelo Globo) e ‘A reportagem atinge a soberania nacional’ (José Dirceu, citado pela Folha) – a palma, não propriamente de honra, vai para o assessor especial de Lula, Frei Betto, pelo artigo ‘O porre do presidente’, no Globo de quinta-feira.

Este leitor acha que só excepcionalmente a crítica de mídia deve considerar artigos opinativos. Uma razão para fugir à regra pode ser a identidade de quem os escreveu. Outra, o seu conteúdo, quando manifestamente falso, no todo ou em parte. Ambos os critérios se aplicam ao texto mencionado.

Frei Betto é mais do que uma celebridade em certos meios. É um cidadão pago com dinheiro público para assessorar o presidente da República, de quem, faz muitos anos, é amigo e interlocutor próximo. Por isso – e pelo que revela do governo que o trouxe para a função influente que exerce – o seu escrito não pode passar batido.

Ele começa por citar, com aprovação, o julgamento do falecido Henfil de que o New York Times ‘não pode ser levado a sério’. O que não deveria ser levado a sério é esse disparate. O NYT é simplesmente o jornal mais influente do mundo.

Impossível portanto não levá-lo a sério, mesmo que se imagine que ‘sempre (grifo acrescentado) se aliou à política colonialista e intervencionista da Casa Branca’. Se assim fosse, teria apoiado e não criticado a invasão do Iraque.

Há também quem acredite que o homem surgiu na face da Terra no sexto dia da criação, como se lê na Bíblia, e que o evolucionismo de Darwin é uma lorota. De novo: dependendo de quem acredite nisso, o fato merece registro.

O articulista pergunta, retoricamente, por que o Times ‘não segue as pegadas do Washington Post e denuncia as torturas que as tropas americanas infligem aos iraquianos’.

Aqui não há escapatória. Ou ele não sabe do que está falando ou está falando uma inverdade. É mau para o país ter um presidente da República cujo assessor especial é ou desinformado ou mentiroso. Os fatos:

** Primeiro, o Post, ao contrário do Times, apoiou a guerra ao Iraque.

** Segundo, o Post publicou, como que escondida, na página 24, a foto da tortura em Bagdá que deu antes do NYT, em 30 de abril. Depois, em 10 de maio, quando o NYT estampou na primeira página a foto de um prisioneiro iraquiano nu ameaçado por cães segurados por guardas, o Post fez o mesmo – na página 19.

Qualquer foca há de saber o que significa – jornalisticamente e politicamente – para um órgão de imprensa dos Estados Unidos a decisão de soterrar ou escancarar fotos tão devastadoras para o governo do país.

** Terceiro, nenhum jornal americano publicou mais matérias do que o NYT sobre as torturas em Abu Grahib, incluindo depoimentos de prisioneiros e informações oficiais reservadas.

** Quarto, o NYT pediu em editorial a cabeça do secretário de Defesa Donald Rumsfeld – antes que o repórter Seymour Hersh, na edição desta semana do New Yorker, o acusasse de ter dado carta branca aos interrogadores no Iraque.

Dupla autoridade

Mas que podem os fatos diante das convicções (ou dos artifícios da propaganda) que transpiram santa indignação? “Por que [o NYT] não clama contra o campo de concentração, avesso à tradição jurídica, que os EUA instalaram na base naval de Guantánamo?”, indaga o texto?

Adianta responder que o jornal fez isso não uma, não duas, mas diversas vezes? A última, por sinal, ainda agora, quando a Suprema Corte começou a julgar se os presos da base têm direito ao devido processo legal ou, pelo menos, à proteção da Convenção de Genebra.

O artigo afirma que ‘algo no governo Lula incomoda o NYT‘ e cita, entre os motivos do alegado desconforto, os Estados Unidos terem sido punidos pela Organização Mundial de Comércio por sua política algodoeira.

Custa crer – para dizer o menos – que o autor desconheça a bateria de reportagens e editoriais publicados meses atrás pelo Times frontalmente hostis ao protecionismo agrícola americano. Um dos editoriais, talvez o mais contundente, investiu contra os bilionários subsídios ao algodão concedidos pelo governo Bush.

Se Lula ‘toma um trago’, diz adiante o texto, ‘é por razões sociais’. Falso. Razões sociais são aquelas que motivam formas de comportamento público. Lula põe terno e gravata quando vai trabalhar por razões sociais. Mas ‘toma um trago’ por razões pessoais – porque aprecia uma bebida e ponto. O que não faz dele um alcoólatra, se a aprecia com moderação.

As intenções atribuídas ao New York Times em relação a Lula são, numa interpretação caridosa, delirantes. O delírio consiste em afirmar que o jornal está a serviço da Casa Branca, que foi obrigada a ‘conter a sua sanha na Venezuela e em Cuba’. Por isso, fez uma matéria para ‘minar a honra e a autoridade de nosso presidente’. Eis duas supostas relações de causa e efeito que o articulista deve ter achado desnecessário comprovar.

O mesmo vale para ‘o NYT não pode suportar a autoridade moral e política de um retirante nordestino, que saiu da fábrica para presidir o Brasil’. E se a justaposição das passagens significa algo, Lula teria demonstrado essa dupla autoridade quando ‘indagado nos EUA se gostava de Bush, respondeu que gosta mesmo é da Marisa, com quem está casado há trinta anos’.

Razão tem Clóvis Rossi, da Folha, quando lamenta:

‘Como o presidente parece dar ouvidos a essas teorias ridículas e até concordar com elas, fica mais fácil de entender o seu pobre governo. Sua assessoria e ele próprio preferem fantasiar a encarar os fatos.’

Se é que de fantasias se trata. [Fechado às 14h28 de 17/5]