Há uma enorme ilusão na ideia de que a imprensa tradicional trabalha com uma visão objetiva da realidade. Aliás, é nesse mito que a imprensa fundamenta seu valor simbólico, como instituição que suporta a modernidade: quanto mais objetiva a visão de mundo, mais distantes estaremos, supostamente, dos arcaísmos e da barbárie.
Com base nessa suposição, a imprensa cobra da sociedade um respeito e uma reputação que a colocam entre os principais poderes institucionais. No entanto, para qualquer lado que se olhe, pode-se notar que a objetividade é somente uma ficção, não apenas como resultado da narrativa, mas como na própria intencionalidade da ação jornalística.
O que move, condiciona e determina o trabalho jornalístico é uma crença – e, uma vez que se abandonou a ambição da objetividade, pouco resta de valor real das crenças que, afinal, têm como objetivo apenas a imposição de uma moral específica, não a busca da verdade. Tanto faz se um jornal está falando da visita do papa, de economia ou de política, a linguagem jornalística institucional produz sempre um discurso comprometido com uma crença, sob o disfarce de uma narrativa desprendida e fundada na realidade objetiva.
Observe-se, por exemplo, como os jornais tratam o caso do pagamento de propinas que denuncia a existência de um vasto sistema de corrupção nos governo do estado de São Paulo e do Distrito Federal, associado a obras do metrô. O assunto foi tema de capa da revista IstoÉ na semana passada, em ampla reportagem intitulada “O propinoduto do tucanato paulista”, ilustrada com montagem de fotografias de Mário Covas, José Serra e Geraldo Alckmin, que se sucederam no governo de São Paulo durante o período em que teriam ocorrido pagamentos de propinas em troca de contratos para obras do metrô.
Embora potencialmente, segundo uma visão objetiva dos fatos, fosse o caso de os jornais darem curso às revelações de IstoÉ, como tem sido rotina em outros escândalos, a reação da imprensa, em geral, é um silêncio capaz de fazer ruborizar a imagem de Nossa Senhora Aparecida – para fazer referência objetiva a uma crença. Com certeza, os editores acreditam que, se eles não falarem do assunto, ele não vai existir.
Uma suposta eventual possibilidade
Acontece que a realidade objetiva indica que o Brasil precisa continuar investindo em obras de infraestrutura, o que inclui muitos quilômetros de metrô e uma nova e moderna rede ferroviária. E as empresas que fornecem materiais e tecnologia para esses projetos bilionários têm que estar em dia com a Justiça, para participar de tais licitações.
A multinacional Siemens, de origem alemã, faz parte do seleto grupo de corporações habilitadas a fornecer essa tecnologia e disputar o bolo de dinheiro que está em jogo. Por isso, seu conselho de administradores resolveu colaborar com as investigações. Foi daí que saiu o material que informa a reportagem da revista IstoÉ. Mas a mesma fonte parece não ter provocado comichões de curiosidade nos editores que decidem o que é importante nos grandes jornais.
Assim, o que vemos é uma notinha de um parágrafo no Estado de S.Paulo, na edição de sábado (27/7), informando que o conselho de supervisão da Siemens se reuniria no fim de semana para discutir o futuro da administração do grupo. Segundo o texto, o desafio da reunião seria encontrar caminhos para melhorar o desempenho da empresa. Nenhuma referência ao processo criminal que a multinacional está sofrendo por haver comprado contratos com o metrô de São Paulo e Brasília à custa de propinas.
Na segunda-feira (29/7), na Folha de S. Paulo, uma reportagem um pouco mais alentada informa que a Siemens está discutindo com promotores a devolução aos cofres públicos de um valor correspondente a sobrepreço no fornecimento de serviços e equipamentos.
São onze as grandes empresas envolvidas no esquema, um cartel montado para elevar custos, pagando milhões de reais em propinas a autoridades do governo de São Paulo e do Distrito Federal, durante anos. O resultado pode ser percebido nos trens lotados, no atraso do sistema de transporte sobre trilhos e na origem dos protestos do mês de junho.
Geralmente, a imprensa faz muito barulho contra supostos corruptos, mas costuma poupar os corruptores. Neste caso, com um corruptor confesso, o trem dos jornais passa direto pela estação da corrupção.
No infográfico da Folha, uma pérola da “objetividade” jornalística: a denúncia formal, apurada pela promotoria e admitida pela Siemens, se transforma em “suposto cartel de empresas fornecedoras de equipamentos”. Então, aquilo que é um escândalo concreto e comprovado, vira “talvez uma suposta eventual possibilidade”. E aqueles que se descabelaram com outras denúncias de repente ficam mansos como cordeiros.