Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Uma boa história desperdiçada

O governo federal deve arrecadar em 2011 mais de R$ 900 bilhões de receita primária, isto é, não financeira. Cerca de um quinto do Produto Interno Bruto (PIB) será convertido em tributos da União, segundo a projeção embutida no orçamento. Bastaria esse motivo, se não houvesse outros, para a imprensa acompanhar com muito cuidado a política orçamentária, desde o primeiro esboço até a sanção presidencial e a execução no dia a dia.

Em 2010, o noticiário sobre o tema ganhou tempero especial. O senador Gim Argello renunciou à relatoria do projeto quando foi acusado de apresentar emendas em benefício de entidades fantasmas. O assunto foi tratado com atenção pela imprensa durante algum tempo, mas depois a cobertura murchou. O material publicado nos maiores jornais do Rio e de São Paulo depois de aprovado projeto orçamentária foi burocrático, pobre e até descuidado.

Quem leu dois ou três desses jornais deve ter ficado perplexo. Mesmo catando pedaços de informação em diferentes coberturas – numa a receita total, noutra a receita primária e assim por diante – esse leitor só poderia compor um quadro completo por adivinhação.

Mais atenção

As coberturas mencionaram a projeção de receita inflada pelos parlamentares, mas nenhum reconstituiu a história em sua forma final. A tentativa de inflar a arrecadação, velha prática parlamentar, não era novidade. Durante algum tempo os jornais noticiaram esparsamente as tentativas de negociação do ministro do Planejamento, Paulo Bernardo. Ele tentou convencer os parlamentares a trabalhar com números considerados mais realistas pelo Executivo.

Pelas primeiras informações, os parlamentares haviam acrescentado cerca de R$ 22 bilhões à projeção da receita primária. O ministro teria conseguido negociar um corte de R$ 12 bilhões. Faltariam R$ 10 bilhões, mas a relatora final, a senadora Serys Slhessarenko (PT-MT), teria podado apenas R$ 3 bilhões. Na votação em plenário, no entanto, o excesso de R$ 22 bilhões (ou R$ 22,9 bilhões, segundo uma das matérias) continuava lá. Então, que diabo terá ocorrido durante a tramitação final e as negociações entre Executivo e Congresso? Nenhum jornal explicou esses detalhes. Quem acompanhou o noticiário com alguma atenção, enquanto a imprensa se ocupou do assunto, ficou certamente perplexo, porque o desfecho da história não combinou com os capítulos intermediários.

Outra frustração para o leitor foi o abandono da questão das emendas. Depois de publicar as acusações ao relator Gim Argello e de explorar por algum tempo a histórias de abusos, a imprensa parece ter esquecido o assunto. No entanto, mais de 500 parlamentares – senadores e deputados – apresentaram emendas. Quem cobriu bem os detalhes foi a organização Contas Abertas, especializada em finanças públicas.

Para conseguir fundos para as emendas, destinadas em grande parte a beneficiar ‘entidades sem fins lucrativos’, os congressistas desviaram verbas de urbanização de favelas, saneamento e educação. Um pouco mais de atenção a esses dados teria rendido, muito provavelmente, boas e oportunas histórias.

Matérias importantes

Deu-se mais atenção, na cobertura final, à disputa sobre a margem de remanejamento de verbas do PAC, o Programa de Aceleração do Crescimento. O Executivo pretendia ter liberdade para remanejar até 30%. A oposição insistiu em 25%. O resultado final foi quase um empate. Valem os 25% para reorientação de verbas por decisão do Executivo, mas a margem poderá ser maior, se houver consulta à Comissão Mista de Orçamento. No fundo, a briga não foi muito mais que uma picuinha. Retirar recursos de um projeto emperrado e destiná-lo a outro com maior chance de conclusão é um procedimento defensável. A oposição poderia ter dedicado mais esforço a outros detalhes do processo orçamentário – e os jornais também.

Numa boa cobertura do orçamento os jornais podem ir muito além do trabalho das emissoras de TV e rádio. Podem acompanhar e explicar detalhes dificilmente tratáveis nos meios eletrônicos. Esses detalhes talvez sejam tecnicamente complicados, mas o esforço para esmiuçá-los pode resultar em histórias politicamente importantes e até divertidas. Desta vez, os jornais perderam uma boa ocasião de mostrar sua relevância especial como meios de comunicação.

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Jornalista