A mulher (de seus quarenta e poucos) e o filho adolescente saem de casa e ficam na esquina pensando no que fazer. O marido bateu nela e perseguiu o filho com uma faca quando ele tentou defender a mãe. Duas horas depois (lá pelas três da manhã de uma noite de inverno), mãe e filho criam coragem para voltar para casa, contando que o agressor a esta altura esteja mais calmo. E a vida continua.
Como diz a música ‘Notícia de Jornal’ (de Luís Reis e Haroldo Barbosa), ‘a dor da gente não sai no jornal’ e casos como o dessa senhora, que mora no interior de São Paulo, não chegam nem ao conhecimento dos vizinhos porque tudo acontece em silêncio. Afinal, no dia seguinte ela vai estar lá, na mesma casa, esperando pela próxima crise do marido e ouvindo da família que ‘ele não fez por mal’.
Só fiquei sabendo dessa história porque a vítima em questão não sabe que sou jornalista. Ela se inclui entre os milhares de mulheres que sofrem caladas, com medo até que o marido, companheiro, namorado – ou seja lá a categoria em que se encaixe o agressor – desconfie que ela contou sua tragédia para alguém. E, o que é pior, acabam se perguntando se a culpa não é delas.
As notícias sobre violência contra as mulheres só chegam aos jornais quando envolvem famosos ou, como aconteceu agora, quando uma nova lei trata do assunto. Um projeto de lei foi divulgado pela imprensa no dia 15/12: proposto pela deputada Elcione Barbalho (PDMB-PA), o Projeto de Lei 4.367 amplia a Lei Maria da Penha, incluindo namorados e ex-namorados violentos entre os passíveis de punição. Isso porque, segundo os jornais, o número de queixas de ameaça já superou – pelo menos na cidade de São Paulo – as queixas de agressão.
A postura das mulheres está mudando
Ou, como disse o jornal O Estado de S.Paulo (15/12/2010):
‘As mulheres vítimas de violência doméstica não estão esperando ser agredidas para procurar as delegacias especializadas da cidade de São Paulo. No primeiro semestre deste ano, segundo as delegacias de Defesa da Mulher, houve em média 28 queixas de ameaças de companheiros por dia, ante a média de 27 em todo o ano passado. O registro de agressões físicas recuou de 23 para 19 diários, se comparado o mesmo período.’
A matéria do Estado teve como base o Projeto de Lei da deputada Elcione Barbalho que inclui a agressão praticada por namorado ou ex-namorado como uma das categorias de violência contra mulher puníveis pela Lei Maria da Penha, que só previa punição para agressores que viviam ou viveram juntos com suas vítimas.
A aprovação deste projeto – necessário e bem-vindo – reflete uma triste realidade mostrada pelo jornal: homens violentos não precisam morar com uma mulher para se sentir no direito de agredi-la. O que está mudando, como mostra a reportagem, é a postura das mulheres, que estão reagindo antes do fato consumado. Por que as mulheres estão reagindo mais? A assistente social Fátima Marques, titular da Coordenadoria da Mulher da Prefeitura de São Paulo, acredita que o principal motivo é a independência financeira (o número de mulheres empregadas aumentou em 22% em relação a 2009): ‘Entre as mulheres que não procuram ajuda após ameaça estão aquelas que não têm emprego, são dependentes financeiramente do marido. Elas ficam preocupadas com as crianças. O fato de haver independência financeira permite a ela pensar em abandonar o agressor.’
Sem preguiça ou comodismo
Mas este não é o único fator. Segundo a promotora pública Maria Gabriela Mansur, casos como o de Elisa Samudio (a namorada do goleiro Bruno) e Mércia Nakashima (vítima de um ex-namorado) ‘fazem as mulheres terem consciência que elas podem até ser mortas pelas namorados e estimulam as denúncias’.
O fator informação – e é aí que entra a imprensa fazendo a sua parte – tem sido importantíssimo para mudar a postura das mulheres. Cada vez que um jornal ou emissora de TV mostra casos como o de Mércia e Elisa está dizendo às mulheres – e as vítimas estão em todas as classes sociais – que elas também podem ser vítimas e, o mais importante, que elas podem reagir. É verdade que o caso de Elisa Samudio – que já tinha feito uma denúncia e até aparecido em noticiário de TV – só ganhou notoriedade quando era tarde demais. Mas talvez o noticiário sobre a prisão e o julgamento do goleiro Bruno preste um bom serviço às mulheres ao dizer aos possíveis agressores que, se nem um ídolo está livre, eles também precisam ter cuidado.
A matéria do Estadão, além de prestar um bom serviço às mulheres – ao deixar claro que as ameaças de ex-namorados ou namorados também são crimes –, é um bom exemplo de jornalismo bem feito. A partir de uma pequena notícia (que foi como a Folha de S.Paulo tratou do assunto) o jornal mostrou o que está acontecendo hoje, lembrou casos passados, contou em detalhes o caso de uma mulher que ‘fugiu do marido violento e caiu na burocracia da justiça até virar o jogo com a ajuda da defensoria’ e anunciou a criação – só na cidade de São Paulo – de mais seis juizados especiais. Enfim: deu ao assunto o tratamento que ele merecia, sem se deixar engolir pela preguiça e comodismo com que faz a mídia, na maioria das vezes, perder a oportunidade de fazer boas matérias. E prestar um bom serviço aos seus leitores.
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Jornalista