Estamos em março de 2015 e faltam cerca de dois meses para as eleições gerais. Uma empresa de comunicações está a cavalo na política britânica – espalhando-se pela televisão, pelos jornais e pela internet. É duas vezes maior que a BBC e seu faturamento é o equivalente a quase 24 bilhões de reais. Controlada por Rupert Murdoch, a empresa chama-se News Corporation.
Sem qualquer vínculo com a tradição de imparcialidade da BBC, a família Murdoch vai decidir se endossa um segundo mandato de David Cameron. Reunida, ela está ciente de que sob seu controle encontra-se o sustento de uma empresa cujos jornais Sun e Times são responsáveis por dois quintos de todos os jornais vendidos na Grã-Bretanha e cuja operação de difusão supera o das três maiores emissoras de televisão – a BBC, a ITV e o Canal 4.
Essa visão do poder financeiro e político apavorou de tal forma os concorrentes que eles se uniram, assustados. Do Daily Telegraph ao Daily Mirror, do Guardian ao Daily Mail, foi preparada uma carta conjunta a ser enviada a Vince Cable, o secretário de Administração. O comunicado, a ser enviado hoje, tem um objetivo simples: persuadir o secretário Cable a bloquear a proposta da News Corporation de adquirir o controle absoluto da BSkyB por mais de R$ 21 bilhões.
Teve gente que o chamasse de ‘momento Berlusconi’ britânico. Entretanto, mesmo na Itália seria possível argumentar que o domínio de Silvio Berlusconi sobre a mídia é menos completo. O primeiro-ministro italiano controla três das principais emissoras de televisão através de sua empresa Mediaset, mas não lhe é permitido possuir jornais no país – embora um pequeno jornal seja controlado por seu irmão.
Pressões políticas
Seja ou não um ‘momento Berlusconi’, o protesto representa uma dor de cabeça inesperada para David Cameron e para o governo de coalizão. Os aliado naturais do primeiro-ministro na Fleet Street [rua em que se encontram as redações dos principais jornais britânicos] dividiram-se. Liderando os rebeldes está lorde Black, diretor de Comunicações do Partido Conservador abaixo de Michael Howard, que agora é diretor-executivo da empresa que controla o Daily Telegraph – e que conta com o apoio definido de Paul Dacre, editor-chefe do Daily Mail.
E se o partido de Cameron deve muito do apoio à sua pré-eleição ao Sun e ao Times – inclusive o endosso de Simon Cowell, no Sun – os liberal-democratas não têm tal dívida.
O que mais assusta hoje os donos de jornais ingleses é o que aconteceria quando os lucros do BSkyB se compararem ao poder do Sun e do Times, criando uma empresa de mídia cujo tamanho e proporções são desconhecidos na história da Grã-Bretanha.
A Sky é maior que a atual BBC, com um faturamento de mais de R$ 15 bilhões, enquanto a News International movimenta cerca de R$ 4,5 bilhões. A BBC, por seu lado, tem um faturamento equivalente a mais de R$ 12,5 bilhões – mas é previsto um corte na taxa de recolhimento permitida pela legislação britânica, entre as medidas que pessoal de dentro da BBC descreve como pressões políticas neo-conservadoras dos jornais de Murdoch.
Promoção cruzada
Por si só, a Sky tem condições de superar propostas de concorrentes como quiser. No início deste mês, quando a emissora abocanhou os direitos das duas próximas temporadas do seriado Mad Men, ofereceu R$ 600 mil por episódio. Até então, a BBC vinha pagando cerca de R$ 170 mil. A Sky gasta mais de R$ 2,6 bilhões por ano com esporte – e na atual temporada ganhou os direitos exclusivos de transmitir os jogos da Liga dos Campeões – com exceção de uma partida por semana, que a Uefa reservou para a ITV.
Até hoje, a News Corporation de Rupert Murdoch detém apenas 39,1% dos negócios de fundos de pensão britânicos e norte-americanos – o que significa que a maioria dos lucros vaza para investidores externos. O quadro de diretores independentes da Sky – em cujas fileiras se incluem lady Gail Roebuck, editora de Tony Blair, o ex-presidente do Royal Mail Allan Leighton e Jacques Nasser, ex-diretor-executivo da Ford – contribui para garantir que o fluxo de caixa da empresa seja dirigido para os lucros de todos os seus acionistas. Caso a News Corporation viesse a deter a propriedade absoluta da empresa, passaria a controlar um fluxo de lucros da ordem de mais de R$ 1,6 bilhão (de acordo com a avaliação mais recente), podendo chegar a mais de R$ 3,7 bilhões em 2015. Isso, segundo dados levantados pelo banco de investimentos Nomura, que também prevê que a Sky atinja um faturamento de mais de R$ 20 bilhões naquela data – quase mais R$ 5 bilhões do que hoje, que poderiam ser usados para promover tanto os jornais da empresa, quanto suas emissoras.
O que receia o grupo dos jornais é que a News Corporation use sua riqueza suplementar para fazer uma promoção cruzada de televisão e jornais, um conceito simples também conhecido como ‘pacote’.
Perdas ‘insustentáveis’
Lorde Puttnam, o cineasta que agora é vice-presidente do Canal 4, declara: ‘Não só é possível que sejam feitas ofertas, aos assinantes da Sky, de aquisição de exemplares do Sun ou do Times a baixo preço, como há a perspectiva de descontos maciços em serviços eletrônicos inimagináveis para você ou para mim.’
No passado, a Sky já se aproveitou de um pacote para crescer às custas dos concorrentes. Há muito tempo que a empresa é a líder da televisão paga – sua parcela do mercado é de 80% –, mas quatro anos atrás a empresa decidiu entrar no mercado de banda larga. E o fez reduzindo a BT e oferecendo um serviço gratuito a seus assinantes – numa época em que a legislação impedia que a BT vendesse deficitariamente.
O serviço de banda larga da Sky cresceu rapidamente e metade de seus clientes optou pelo produto gratuito – embora as promoções de serviços gratuitos tenham praticamente acabado, a empresa conta agora com 2,6 milhões de clientes. E no entanto, quando a BT tentou denunciar o serviço predatório de preços da Sky, a agência reguladora responsável (Ofcom) não investigou o caso.
Há muito que Murdoch vem adotando uma estratégia de reduzir preços no Times e no Sun – este último chegou a ser vendido, este ano, a 50 centavos. Relatórios arquivados na Companies House sugerem que alguns de seus jornais ingleses vêm tendo que ser mantidos por outros setores da empresa. As perdas do Times e do Sunday Times em 2009 foram de quase R$ 235 milhões até 28 de junho – um nível qualificado como ‘insustentável’ pelo editor do Times, James Harding – e foram parcialmente sustentadas pelo lucro equivalente a mais de R$ 105 milhões do Sun e do News of the World.
Difícil de bloquear
Advogados dos concorrentes dizem que a Sky exibe o que é conhecido como ‘domínio crescente’ – um círculo virtuoso no qual o êxito financeiro lhe permite gastar mais dinheiro, para conquistar mais clientes e, consequentemente, gerar mais lucros. A força financeira da Sky permite-lhe superar as propostas dos concorrentes num leque cada vez maior de direitos de esporte – e agora está se movimentando para adquirir programas norte-americanos. E há também inovações tecnológicas: este mês, a Sky tornou-se a primeira emissora a lançar um canal 3D, com a cobertura da Copa Rider. Com um serviço melhor, ganha mais clientes – um movimento difícil de deter.
Durante as duas últimas décadas, o crescimento do poder econômico de Murdoch não foi questionado. Os políticos trabalhistas resistiam em atacar o magnata da mídia, em parte por temerem perder o apoio de seus jornais, mas também porque – nas palavras de um ex- ministro – ‘não se sabia com antecipação que a Sky seria bem-sucedida. Por que, então, puni-los?’
Entretanto, o fato de se tratar de uma transação específica – os mais de R$ 21 bilhões para adquirir a BSkyB – dá às autoridades responsáveis pela concorrência e aos políticos uma oportunidade para intervir. Porém, o problema para o campo anti-Murdoch é que as autoridades responsáveis pela concorrência vêem a televisão e os jornais como dois mercados distintos, ainda que tenham relação. Os advogados anti-Murdoch reconhecem que seria difícil bloquear o negócio na base da concorrência porque, com o resultado, a Sky não ficaria maior, enquanto televisão, e a News Corporation não ficaria maior em termos de jornais.
Aliança improvável
Historicamente, no entanto, a propriedade cruzada de meios de comunicação tem sido assunto para legislação primária, e não para regulamentação de concorrência, mas as atuais regras estão bem atrasadas em relação à realidade econômica. Portanto, a única regulamentação nítida é aquela que impede a News Corporation, ou a Sky, de deterem mais de 20% da ITV.
Mas depois que uma medida foi tomada, em 2006, com o objetivo de impedir que as ações da ITV caíssem nas mãos da Virgin Media, a Sky detém apenas 7,5% – o que conseguiu aproveitando-se de uma brecha legal que permite à família Murdoch uma palavra fundamental sobre o futuro da ITV – caso uma empresa de mídia estrangeira tente fazer uma proposta mais alta.
É por isso que qualquer que seja o apelo a ser feito a Vince Cable, terá que ser feito com base no argumento confuso da ‘pluralidade dos meios de comunicação’. O argumento é o de que a News Corporation e a Sky, juntas, são tão grandes em relação a seus concorrentes que sua potência financeira combinada levará, inevitavelmente, à erosão gradual das posições dos jornais concorrentes. ‘Se eles cortarem o preço do Times, acho que os primeiros atingidos seriam o Financial Times e o Daily Telegraph‘, disse Puttnam.
E o argumento da pluralidade baseia-se na noção – impossível de provar – de que os outros jornais poderiam ser prejudicados, ou mesmo levados à falência, devido a uma ainda não especificada promoção cruzada ou subsídio. Na realidade, significa que os jornais de Fleet Street terão que conseguir uma aliança altamente improvável para aumentar a temperatura política e terem alguma possibilidade de sucesso. E se assim tiver que ser, o Mirror, o Mail, o Guardian e o Telegraph talvez façam exatamente isso.
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Jornalista