Saturday, 07 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1304

Uma coisa é uma coisa…

As coisas andam tão confusas que nunca houve tanta necessidade de se deixar bem claro que uma coisa é uma coisa e outra coisa é outra coisa. Em artigo neste Observatório (‘O jornal já não serve para embrulhar peixe‘), defendi os movimentos populares, os institucionais e as medidas governamentais que possam contribuir para o avanço da integração dos países sul-americanos, beneficiando a todos e minimizando os efeitos nocivos do imperialismo norte-americano (ou mesmo, baseado em conceito de Antonio Negri, o império sem pátria nem mátria, menos ainda frátria), que sempre tratou de separar para dominar.

Falei do que me parece óbvio: a explícita tendência dos impérios jornalísticos em satanizar os movimentos de libertação dos povos, decretar o fim das ideologias de esquerda e desqualificar, ou mesmo ridicularizar, as lideranças políticas que insistem em levantar bandeiras socialistas que tenham o propósito de fazer justiça, resgatando as massas, marginalizadas do mercado de trabalho e alienadas de suas culturas.

Para as elites dos setores econômico-financeiros e seus porta-vozes plantados na mídia oligopolizada, até que estaria tudo sob controle se se tratasse apenas de contestações no âmbito das discussões sobre neoliberalismo versus estatismo. Porém, o que está em jogo são poderes bem mais complexos do que as definidas estruturas de poder do Estado.

A ‘subversão’ do protesto popular

Da fraseologia sartreana, talvez esta sua citação defina, de certa forma, a origem do desespero da mídia autóctone, e, pelo visto, do Quarto Poder em grande parte do planeta: ‘Quando, alguma vez, a liberdade irrompe numa alma humana, os deuses deixam de poder seja o que for [ou quanto for] contra esse homem’.

E de A alma do homem sob o socialismo, de Oscar Wilde, extraímos esse trecho:

‘Os agitadores são um bando de pessoas intrometidas que se infiltram num determinado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vivem e semeiam o descontentamento nele. É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria.’

Jean-Paul Sartre, em meados do século 20, e Oscar Wilde, desde o 19, já indicavam o caminho das pedras para as mudanças que há muito tempo tentamos realizar. Entretanto, seus pensamentos contrariam as elites burguesas que atravessam séculos condenando a ‘subversão’ que elas enxergam em qualquer expressão de protesto popular.

Basta que líderes políticos como os presidentes Hugo Chávez, Evo Morales ou Lula da Silva protestem, à maneira como se faz em qualquer botequim, roda de amigos ou reunião de família, e logo algumas vozes se levantam condenando a ‘quebra de protocolo diplomático’, ou chamando-os de mal-educados, ou até situando-os entre os mais cruéis ditadores da História, mesmo que tenham sido eleitos pelo voto popular; paradoxalmente a forma que essas elites reconhecem como a mais democrática para a conquista do poder institucional.

Declaração esclarecedora

A vaia que Hugo Chávez ‘provocou’ na platéia que lotava a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro na sexta-feira (19/1) contra o jornal O Globo, melindrou muita gente. O atento observador Alberto Dines, em ‘Chávez investe contra O Globo‘, tentou dar voz aos supostamente ofendidos:

‘Dirão alguns que Chávez reclamou apenas contra um veículo nacional, O Globo, cuja manchete leu, parece que entendeu e não gostou. Não importa: como hóspede do país, o magnata do petróleo não tem o direito a imiscuir-se em nossa vida; não tem o direito, sobretudo, de investir contra setores ou entidades que gozam de todas as garantias constitucionais.’

A meu ver, entre os leitores que comentaram as declarações de Dines transcritas do programa radiofônico do OI, José Antonio Gonçalves (São Paulo-SP – geólogo) foi o mais esclarecedor:

‘`O pronunciamento do caudilho contra a mídia brasileira na sexta-feira foi uma clara intervenção em nossa vida e soberania.´ A frase de Dines é um jogo de 7 erros: 1- Chávez não é caudilho, pois foi reeleito democraticamente; 2- O pronunciamento foi contra O Globo, e esse jornal não corresponde a toda a `mídia brasileira´; 3 – O pronunciamento é uma crítica, e não uma `clara intervenção´; 4 – A soberania de um país não pode ser atacada com palavras; 5 – Soberania é atributo de uma nação ou governo, nunca da mídia; 6 – Dines não deveria cometer esses erros; 7 – Eu não devia ter perdido meu tempo lendo essa matéria.’

Sinceridade e ‘boa-intenção’

Do leitor José Antonio, discordo apenas no que diz respeito à sua suposta perda de tempo ‘lendo essa matéria’, visto que a leitura gerou um excelente comentário, o qual põe abaixo toda a gritaria dos ‘indignados’ com as declarações de Chávez na ALERJ, quando este acusou o jornal de ser ‘inimigo do povo brasileiro’, certamente baseado nas campanhas golpistas que ele sofreu na Venezuela. Porém, entre a abalizada análise de José Antonio e os comentários que apóiam a queixa de Alberto Dines, o leitor Menjol Almeida (São Paulo-SP, analista de cobrança) cometeu o que chega a ser um atentado à moral de Dines, comparando-o a figuras obscuras como Diogo Mainardi e Arnaldo Jabor.

Sobre o meu texto neste OI, o jornalista-escritor Fausto Wolff me escreveu:

‘…devo dizer que nossos pensamentos coincidem no que diz respeito à América Latina (…) o texto é primoroso, pois mesmo no erro [a minha defesa ao governo Lula] há sinceridade.’

Ser sincero, neste caso, é bem diferente dos bem-intencionados que lotam o inferno: estes, muitas vezes, tentam apenas agradar, ou formar ‘jurisprudência jornalística’, enquanto aqueles expressam suas convicções, mesmo que mal resolvidas. É aí que um jornalista é Alberto Dines, outras ‘coisas’ são mais nada.

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Escritor, Rio de Janeiro, RJ