Não é apenas uma data redonda: o 40º aniversário do AI-5 transcende a efeméride. A rememoração antecede o sábado, 13 de dezembro, e pelas revelações está fadada a reativar um debate prematuramente arquivado ou confinado à esfera acadêmica. O que vem dar na mesma.
O AI-5 atingiu o Estado brasileiro, afrontou os poderes constituídos, arrasou a República, feriu direitos individuais e coletivos, deu suporte à repressão dos Anos de Chumbo. Mas a fúria maior de seus inspiradores dirigiu-se contra a imprensa. Aliada e coadjuvante da quartelada que derrubou João Goulart em 1964, a imprensa funcionou sem grandes constrangimentos ao longo dos quatro anos e meio da primeira fase do regime militar.
É verdade que os grandes jornais nunca chegaram a exibir plenamente a vocação fiscalizadora e seu potencial de veemência. Exceção feita ao Correio da Manhã, do Rio, que comandou o apoio ao golpe e logo passou a criticá-lo e também a Tribuna da Imprensa, hoje fora de circulação.
Registraram-se reparos pontuais contra as arbitrariedades dos atos institucionais, contra a escolha de Costa e Silva como sucessor de Castelo Branco e contra a ausência de debates antes da promulgação da nova Constituição (a de 1967). Com prudência noticiaram-se prisões, cassações e as primeiras ações de militantes armados. As manifestações estudantis foram cobertas com destaque. A Frente Ampla – surpreendente aliança entre três ex-adversários, Carlos Lacerda, JK e Jango – foi acompanhada de perto.
Perto demais. A linha-dura percebeu que a mesma imprensa responsável pela mobilização da classe média a favor da quartelada convertia-se ostensivamente em porta-voz da primeira tentativa de resistência política à ditadura. Detestou.
A Frente Ampla foi extinta formalmente pelo ministro da Justiça, Gama e Silva, em 5 de março de 1968 e nove meses depois era promulgado o AI-5, o golpe dentro do golpe: os falcões desfaziam-se dos parceiros que já não poderiam controlar.
Circulação suspensa
Mordaça no Estadão, livro-reportagem de José Maria Mayrink, conta a história da censura imposta ao Estado de S.Paulo e desvenda importantes questões relacionadas com o cisma que marcou a segunda fase do regime militar.
A primeira medida censória deu-se antes mesmo do anúncio do AI-5, quando a Polícia Federal apreendeu parte da edição da sexta-feira, 13 de dezembro de 1968, que noticiou a recusa da Câmara Federal em conceder a licença ao governo para processar o deputado Márcio Moreira Alves (MDB-RJ).
Nem havia base ‘legal’ para a apreensão do jornal, mas os órgãos de segurança já estavam preparados doutrinariamente para recorrer à violência. A censura formal começou horas depois, naquela noite, quando funcionários da Divisão de Diversões Públicas da Secretaria de Segurança de São Paulo entraram na redação e começaram a examinar o noticiário político.
Mais ou menos à mesma hora, no Rio, encerrada a leitura pelo rádio e TV da íntegra do texto do AI-5, chegavam à redação do Jornal do Brasil quatro capitães e um major do Exército, uniformizados, aparentemente desarmados. Na condição de editor-chefe pedi autorização ao diretor do jornal, M.F. do Nascimento Brito, para informar o leitor de alguma maneira que o jornal estava sendo manipulado. Como jornalistas era nosso dever mostrar que o jornal estava controlado por não-jornalistas.
Nascimento Brito autorizou e advertiu – ‘Não quero bagunça’. Não houve bagunça: os censores, inteiramente despreparados, examinavam na minha sala as provas de todas as páginas (inclusive da seção de esportes), mas na oficina tipográfica faziam-se outras. E estas eram as que seguiam para a impressão.
Não houve bagunça: no sábado pela manhã o Rio sabia que o jornal estava sob censura. Na tarde seguinte, quase ocorreu uma cena de pugilato porque o major se sentiu ferido nos seus brios, mas foi contido pelo novo chefe, um tenente-coronel. Agora sabiam como operar: eram sete, parte fazia os cortes na minha sala, os outros verificavam na oficina se suas determinações estavam sendo cumpridas.
Inútil: o JB não saiu no dia 15 de dezembro, domingo. O outro diretor, o embaixador Sette Câmara, primeiro governador da Guanabara, muito ligado a Juscelino Kubitscheck (de novo a Frente Ampla), estava sendo procurado pela PF e a direção da empresa, diante desta ameaça, considerou não haver condições para circular. Decisão de grande efeito: estávamos em plena temporada natalina, ficou evidente a anormalidade da situação. Os anunciantes demonstraram inesperado espírito público e transferiram todos os anúncios para os dias seguintes.
Culpa do quê?
Importante rever estes episódios não para valorizar desempenhos pessoais e empresariais, nem emular a audaciosa iniciativa editorial do Estadão magnificamente executada por Mayrink. Nossa imprensa deve ser estimulada a se examinar, rever-se, individuar-se, competir.
Os versos de Camões e as receitas culinárias para substituir as matérias censuradas nas páginas do Estadão e do Jornal da Tarde não foram bravatas ou simples exibições de criatividade. Foram recusas frontais à aviltante autocensura. Manifestações de soberania moral. Se durante o Estado Novo nossos jornais tivessem exercitado igual determinação, a primeira mordaça não teria vingado ao longo de oito anos (1937-1945). Antes de empresas, jornais são instituições, representam compromissos sociais que não podem ser fraudados.
O pretexto do AI-5 foi o discurso de Moreira Alves e a recusa da Câmara em entregar seu mandato ao governo militar. A verdadeira intenção era emascular a imprensa, diminuí-la. Conseguiram em alguns casos, em outros não.
O mais grave é que quatro décadas depois, pesquisa publicada pelo jornal Folha de S.Paulo revela que 82% dos entrevistados ignoram o que foi o AI-5. Culpa do ensino ou culpa da mídia? Culpa de outra mordaça, esta invisível, tenaz, letal: a banalização. Podem chamá-la de esquecimento.