Saturday, 23 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Uma nova infâmia

Como jornalista, aprendi que nada é impossível.


Então, depois de ler, estarrecido, o texto no (aqui, para assinantes) qual o cientista político Cesar Benjamin acusava o presidente Luiz Inácio Lula da Silva de lhe haver relatado uma tentativa de estupro que teria cometido em 1980, resolvi esperar a evolução do caso antes de condenar inapelavelmente quem um dia já foi herói deste sofrido país. Mas, a minha avaliação inicial foi das mais negativas. Daí haver afirmado claramente, em artigo escrito de bate pronto, que o relato de Benjamin, da forma como foi apresentado, lhe valeria uma condenação como caluniador em qualquer tribunal.


Algo assim só seria aceitável com a corroboração da suposta vítima ou, pelo menos, das outras pessoas que ele afirmou estarem presentes na conversa. Nas edições subsequentes, a Folha de S.Paulo nada acrescentou que verdadeiramente respaldasse a versão de Benjamin – o qual não se manifestou, sequer. E as reações vieram em cascata:


‘Um lixo, um nojo’


** O publicitário Paulo de Tarso da Cunha Santos, citado por Benjamin, afirmou que ‘o almoço a que se refere o artigo de fato ocorreu’, que ‘o publicitário americano mencionado se chamava Erick Ekwall’ e que não houve ‘qualquer menção sobre os temas tratados no artigo’;


** o cineasta Sílvio Tendler, com melhor memória (a conversa aconteceu há 15 anos), diz ser o outro publicitário cujo nome Benjamin esqueceu e sugere que outorguem ao cientista político o ‘troféu de loira [burra] do ano’ por não haver entendido ‘uma brincadeira, como outras 300’ que o Lula fazia todos os dias;


** ex-companheiros de cela de Lula no Dops, José Maria de Almeida (PSTU), José Cicote (PT) e Rubens Teodoro negaram a tentativa de estupro, tendo Almeida acrescentado que não havia ninguém do Movimento pela Emancipação do Proletariado na cela e Cicote se lembrado vagamente de que um sindicalista de São José dos Campos seria apelidado de ‘MEP’;


** Armando Panichi Filho, um dos dois delegados do Dops escalados para vigiar Lula na prisão, disse nunca ter ouvido falar disso e não acreditar que tenha acontecido, mesmo porque, segundo ele, nem sequer havia ‘possibilidade de acontecer’;


** o então diretor do Dops, Romeu Tuma, também desmentiu ‘qualquer agressão entre os presos’;


** o Frei Chico, um dos irmãos do presidente Lula, lembrou que a cela do Dops era coletiva e que nunca Lula ficou sozinho, pois estava preso com os outros diretores do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo (Rubão, Zé Cicote, Manoel Anísio e Djalma Bom).


Lula, de acordo com o chefe de gabinete da Presidência, Gilberto de Carvalho, teria ficado triste e abatido, afirmando que isso era ‘uma loucura’.


A Veja, como era previsível, correu a magnificar o patético episódio – tanto que acabou descobrindo quem seria a suposta vítima (ver aqui, para assinantes). Trata-se de João Batista dos Santos, ex-metalúrgico que morou e militou em São Bernardo. Dignamente, ele bateu com a porta na cara da revista, mandando um amigo dizer que ‘quem fez a acusação, que a comprove’.


Despeitada, a Veja fez questão de acrescentar que João ‘há cerca de três anos, ganhou uma indenização da Comissão de Anistia e foi viver em Caraguatatuba, no Litoral Norte de São Paulo’, como se isto desqualificasse seu posicionamento.


‘Débil mental’


De tudo que foi publicado, quem trouxe mais luzes para a compreensão do imbroglio foi o cineasta Silvio Tendler, participante do encontro cujo nome Benjamin disse ter esquecido.


A coluna da Mônica Bergamo (aqui, para assinantes) fez uma rápida menção ao esclarecimento de Tendler, registrando que ele recomendara jocosamente a outorga a Benjamin do ‘troféu de loira [burra] do ano’ por não haver entendido ‘uma brincadeira, como outras 300’ que o Lula fazia todos os dias.


Mas, a Folha ficou devendo a seus leitores o relato completo do cineasta (ver aqui), que praticamente pulverizou seu factóide. Vide estes trechos:


** ‘O Lula adorava provocar… era óbvio para todos que ouvimos a história, às gargalhadas, que aquilo era uma das muitas brincadeiras do Lula.’


** ‘Todos os dias o Lula sacaneava alguém, contava piadas, inventava histórias. A vítima naquele dia era o marqueteiro americano. O Lula inventou aquela história, uma brincadeira, para chocar o cara.’


** ‘Como é possível que alguém tenha levado aquilo a sério? Só um débil mental, um cara rancoroso e ressentido como o Benjamin, guardaria dessa forma dramática e embalada em rancor, durante 15 anos, uma piada, uma evidente brincadeira.’


Balanço final


** A tentativa de estupro em 1980 não foi confirmada por ninguém, nem mesmo pela suposta vítima;


** Lula parece haver feito em 1994 uma piada de mau gosto, como tantas outras que marcam sua trajetória de falastrão contumaz.


O certo é que não havia sustentação para a Folha publicar, por exemplo, uma reportagem a este respeito. Não se lança uma acusação de tal gravidade contra um presidente a partir de tão pouco. Concedeu, entretanto, uma página inteira para Benjamin colocar essa bobagem em circulação, municiando a propaganda direitista.


O flagrante desrespeito às boas práticas jornalísticas foi admitido pelo ombudsman Carlos Eduardo Lins da Silva (ver aqui, para assinantes), ao concordar com a observação de um leitor, segundo quem ‘não há outra opção ao jornal que publica artigo tão impactante quanto o de César Benjamin que a de, com suas equipes, tentar reconstituir os fatos narrados pelo autor’.


Com a correção e a dignidade que o caracterizam, mas (perceptivelmente) sem poder dizer tudo que gostaria, o ombudsman fixou a posição correta:




‘…é indispensável oferecer ao outro lado espaço e destaque similares para defender pontos de vista opostos aos do artigo de sexta-feira. O ideal seria a apuração factual dos eventos relatados e os argumentos contraditórios saírem com o artigo’.


Sem motivo nenhum para ser comedido, afirmo: jornalisticamente, a atuação da Folha é indefensável, desprezível, manipuladora. Desceu aos esgotos, repetindo o episódio em que usou outro bobo útil de esquerda para tentar envolver a ministra Dilma Rousseff com um plano para sequestrar Delfim Netto que nunca saiu do papel (de quebra publicando, para denegri-la, uma ficha policial falsa que circulava na internet).


Ou seja, a fábrica de factóides da Alameda Barão de Limeira está especializando-se em manipular episódios obscuros para afixar etiquetas falaciosas em personagens políticos: Dilma Rousseff, sequestradora; Lula, estuprador. Agora, a propaganda enganosa da direita vai martelar essas acusações mentirosas até que passem por verdade, como ensinava Goebbels.


Cesar Benjamin, que não é um ingênuo, jamais deveria ter-se prestado a um papel desses. Ou ainda vem a público, com enorme atraso, comprovar sua acusação, ou estará definitivamente morto para a política.


Quanto à Folha, já morreu para o jornalismo faz tempo.


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Em tempo: Eu nem pretendia escrever mais sobre o tiro que Cesar Benjamin deu no próprio pé, ao se deixar utilizar como azeitona na empada da Folha de S.Paulo, mas não resisto a esta Nota da Redação hilária que o jornal cometeu na edição de terça-feira (1/12):




‘A Folha avaliou que era de interesse público publicar [grifos meus: o vocabulário é tão limitado quanto a argumentação…] o artigo. Trata-se do depoimento de uma pessoa com credibilidade, que atuou na cúpula do PT e que narrava uma conversa com o então candidato à Presidência. O texto não afirmava que o ataque havia ocorrido, mas que o candidato relatara a ação’.


E se Lula, da mesmíssima forma, houvesse relatado sua viagem a Marte, seria ‘de interesse público publicar o artigo’? Qualquer bobagem que o Lula diga e uma pessoa com credibilidade reproduza, é digno de publicação nas páginas da Folha?


Ora, tratava-se de uma tentativa de estupro, em local com muitas testemunhas. Então, das duas, uma:


** ou realmente ocorreu e cabia à Folha comprová-la, com depoimentos da vítima, dos companheiros de cela e dos carceireiros;


** ou não ocorreu e a Folha jamais deveria ter dado espaço para que se aludisse com tal dramaticidade a um não-acontecimento, potencialmente dos mais danosos à imagem do presidente da República.


Trocando em miúdos, se o ataque não ocorreu e ‘o então candidato’ apenas ‘relatara a ação’, então, evidentemente, tratou-se de uma brincadeira, de uma piada. E isto deveria estar expresso de maneira inequívoca no texto. Porque há uma grande diferença entre um presidente que faz gracejos de mau gosto e um presidente que tentou estuprar ‘o menino do MEP’. E a Folha sabe muito bem disto.


Para fingir que não praticou um jornalismo manipulador e irresponsável, a Folha novamente subestima nossa inteligência. E se desmoraliza ainda mais.

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Jornalista e escritor, mantém blogues aqui e aqui