A Medida Provisória (MP) nº 398, de 9/10/2007, que autorizou o governo federal a criar a Empresa Brasil de Comunicação (EBC), responsável pela TV Brasil, está prestes a perder a eficácia. Prorrogada por 60 dias em dezembro, ela agora bate no prazo fatal: ou é aprovada, mesmo que com modificações ou substituição, ou morre. Se morrer, levará junto a EBC, que já começou a operar com funcionários próprios. Mas, atenção, não arrastará consigo a TV Brasil.
A explicação é simples. Na hipótese de naufrágio da EBC, a TV Brasil poderá continuar suas transmissões abrigada pela velha Radiobrás – esta deveria ser extinta para dar lugar à nova empresa, mas se manteve em atividade. Assim, os que pretendiam derrotar a MP para forçar o fechamento da TV Brasil caíram do cavalo. Isso não significa que a matéria se tenha tornado irrelevante. Ao contrário. A sobrevivência ou não de mais um canal de TV da administração pública é o de menos (já há dezenas de emissoras desse tipo no País, tanto no âmbito estadual como no federal). O debate central tem que ver, isto sim, com a estrutura que deve ter uma instituição moderna de comunicação pública, agenda que merece a melhor atenção dos representantes do povo. É a primeira vez, em décadas, que o tema entra para valer na pauta do Congresso.
Se a questão se resumisse a lançar mais uma estação de TV, o governo federal não teria de inventar empresa alguma. A ele bastariam as entidades que já existem: a Radiobrás, cujos diretores e conselheiros são nomeados e demitidos pela Presidência da República a qualquer tempo; e a TVE do Rio de Janeiro, que, embora tenha a forma de organização social e não de empresa pública, também tem seus conselheiros e dirigentes feitos e desfeitos pelo Palácio do Planalto. Juntas, as duas somam aproximadamente 2. 500 empregados e contam com emissoras de rádio e TV em Brasília, no Rio de Janeiro e no Maranhão.
Operações superpostas
Além disso, essas velhas estruturas guardam a cultura de promoção pessoal das autoridades, coisa que alguns expoentes do Executivo, de variados matizes partidários, apreciam em silêncio. Nos canais oficiais e (supostamente) públicos do Brasil inteiro, a chapa branca é a regra, ressalvadas as honrosas exceções – que existem, ou existiram, ajudando a demonstrar a natureza antidemocrática da velha comunicação governista. Portanto, mais grave do que o risco de a TV Brasil passar a bajular governantes – um risco real, mas um risco futuro – é a cultura de subserviência cristalizada do presente.
Em resumo, a MP 398 não surgiu porque o governo precisa de autorização para abrir um canal de TV, mas porque ele precisa propor mudanças no modelo sabidamente ultrapassado, se quiser conquistar legitimidade para a sua iniciativa. De poucos anos para cá, a opinião pública despertou para a gravidade da usurpação que vitima emissoras públicas e reclama por uma renovação. A MP veio prometer uma resposta a isso. Seu problema é que promete, mas não entrega.
Há mais debilidades que acertos na MP, a começar por sua natureza de medida provisória, que não deixa muito espaço para a elaboração legislativa – um projeto de lei seria mais adequado. Quanto aos acertos, registre-se o principal: fundir a Radiobrás e a TVE do Rio numa nova instituição, que centralize operações hoje dispersas, por vezes superpostas e redundantes, constitui um passo de racionalidade administrativa. No mais, a EBC tem o semblante – e a nomenclatura – de uma Radiobrás recauchutada. A velha estatal nasceu nos anos 70 com o nome de Empresa Brasileira de Comunicação. A estatal nova se chama Empresa Brasil de Comunicação e, em muitos aspectos, é isso mesmo: uma Radiobrás sem o sufixo ‘eira’. Vejamos mais de perto a sua constituição.
Papel do conselho
A exposição de motivos assinada pelos ministros Franklin Martins, Dilma Rousseff e Paulo Bernardo fala em ‘preocupação presente de garantir a autonomia da nova empresa, por meio da criação de mecanismos institucionais protetores dos dois flancos que poderiam se constituir em ameaças: a subordinação às diretrizes do governo e o condicionamento às regras estritas de mercado’. Muito bem. Ocorre que tanto a MP como o Estatuto da EBC, apresentado pelo Decreto Presidencial nº 6.246, de 24/10/2007, não dão conseqüência àquela ‘preocupação’.
Em relação à falta de independência do modelo antigo, o avanço é quase nulo. Basta ver como se compõe o ‘órgão de orientação e de direção superior da EBC’, o Conselho de Administração (ver artigos 14 e 15 do Estatuto e artigos 12 e 13 da MP). São cinco membros. O ministro da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República indica dois deles. O terceiro é o diretor-presidente da empresa. Os outros dois vêm do Ministério do Planejamento e do Ministério das Comunicações. A esse conselho cabe eleger e destituir os diretores da EBC, à exceção de dois, o diretor-presidente e o diretor-geral, nomeados diretamente pelo presidente da República. Ora, pode haver estrutura mais passível de ‘subordinação às diretrizes do governo’? Pode haver algo de mais semelhante à antiga Radiobrás?
A novidade se resume à presença de outro conselho, o Curador, que tem um representante eleito pelos funcionários e ‘representantes da sociedade civil’ – designados, note o leitor, também pelo presidente da República. O Conselho Curador é vistoso, mas não manda. Embora esteja autorizado a, por maioria absoluta, imputar voto de desconfiança aos diretores, tem funções mais consultivas que deliberativas.
Agora, o Congresso pode transformar essas tímidas adaptações em uma renovação de verdade. Recusar sumariamente a MP não seria um gesto sábio. Os parlamentares têm nas mãos a chance de criar – ou abrir caminho para que seja criada – uma instituição de comunicação pública que seja de fato independente do governo.
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Jornalista, membro eletivo do Conselho Curador da Fundação Padre Anchieta (TV Cultura de São Paulo), professor do Instituto de Estudos Avançados da USP, foi presidente da Radiobrás entre 2003 e 2007