Não é de hoje que os meios acadêmicos e profissionais reclamam da parcialidade da revista Veja. A imparcialidade, no entanto, se observada por uma óptica mesmo infantil, é um mito. Disso todo jornalista sabe também. O problema está em que, havendo no Brasil poucos veículos de comunicação de grande circulação, há poucas partes que são vistas, uma vez que a mídia sempre tende para um lado (inevitável e felizmente). A revista Veja conquistou grande respeito entre os brasileiros e em todo o mundo ao longo de sua história. Hoje é o quarto periódico mais lido no planeta, dona de um enorme crédito diante de faxineiras e megaempresários. Suas capas parecem querer contar uma história ilustrada do Brasil.
Década vai, década vem, as tecnologias da informação vão nos permitido, em seus avanços, circular informações, opiniões, sentidos, como um todo, em mídias diferentes. A revista Veja, seguindo uma tendência internacional, lançou blogues de seus principais colunistas e articulistas, entre eles Reinaldo Azevedo. O colunista vai sempre fundo em suas opiniões, com um estilo que agrada o leitor e o “compra” de graça.
Na sexta-feira (11/11), li um artigo no blogue do Reinaldo, chamado “Um manifesto dirigido às moças e aos moços livres das universidades brasileiras. A maioria silenciosa começa a dizer o que quer”. Título pomposo e cheio de recursos que evocam direita, esquerda e soa um tanto como homenagem ao filósofo Jean Baudrillard. Como cidadão para quem a editora Abril sempre liga, perguntando se eu desejo assinar alguma de suas revistas por ser um, segundo eles, “leitor diferenciado”, resolvi comentar a matéria.
“Desperdiçam dinheiro público!”
Não preciso dizer, mas já digo, que discordei totalmente, em todos os aspectos, do jornalista. Então tentei postar o seguinte:
“Sr. Reinaldo Azevedo,
meu nome é Phellipe Marcel. Sou jornalista, professor universitário, doutorando e extremamente trabalhador. Minha formação acadêmica foi toda concluída no sistema universitário público (federal e estadual) brasileiro. Não creio que deva me justificar, fornecendo informações que deem o aval para minha redação de crítica não apenas ao seu artigo, mas também à política editorial da revista Veja. No entanto, isto é um preâmbulo que deve figurar como forma de identificação não com os ideais defendidos por essa revista, mas pela causa dos estudantes universitários brasileiros, inclusive dos estudantes da USP que ocuparam a reitoria da instituição.
Toda e qualquer crítica é pertinente, inclusive a do senhor. Mas gostaria de perguntar quem é esse ‘nós’ que estampa de forma tão patente seu artigo. É a classe média? É o cosmopolita paulistano? É também o índio brasileiro? É o favelado? É o negro pobre? É o branco profissionalmente subalterno? O senhor tem certeza de que esse ‘nós’ representa, de fato, todo o Brasil, no que há de mais rico e no que há de mais pobre? O senhor está sendo respeitoso quando exclama, brada:
‘Não, eles não se dedicam!
Não, eles não se esforçam!
Não, eles não trabalham!
Não, eles não têm talento!
Sim, eles desperdiçam dinheiro público!’
Posso afirmar, como marxista, que sim, eu me dedico. Sim, eu me esforço. Sim, eu trabalho. Sim, eu tenho talento. Não, eu não desperdiço dinheiro público. O senhor não está sendo reducionista, simplista em suas palavras tão analíticas, típicas de quem se vê como o dono da verdade? Devo ainda responder às suas outras acusações, de forma totalmente parafrástica, mas cujo sentido rompe com o que está estampado em seu artigo. E afirmo à Veja que:
Não aceito mais que nos imponha o seu capitalismo!
Não aceito mais que nos imponha os seus heróis!
Não aceito mais que nos imponha os seus hábitos!
Não aceito mais que nos imponha os seus vícios!
Não aceito mais que nos imponha suas idiossincrasias!
Não aceito mais que nos imponha suas esquisitices!
Não aceito mais que privatize o espaço público em nome de sua causa!
Acho que o senhor pode perceber, inclusive no que diz respeito à privatização, que minha paráfrase funciona muito bem no que diz respeito à ideologia capitalista. O senhor advoga, infalível e brilhantemente em seu artigo, como se a hegemonia na universidade fossem os movimentos de esquerda. Como se o pobre capitalista neoliberal fosse vítima desses mesmos movimentos. Vamos pensar um pouco em nossa formação social, sr. Azevedo. Quem e o que é hegemonia, e quem sofre, é dominado por essa hegemonia?
Quem são seus heróis, sr. Azevedo? Diga-me, quem são? Não mataram eles mais de 200 mil pessoas em Hiroshima e Nagasaki? Mais de 100 mil no Iraque? Sabe-se lá quantos no Afeganistão? Quantos no governo Pinochet? Isso apenas nas guerras e nos conflitos armados… Quem são seus heróis, volto a perguntar? Ou o senhor, não tão simplório, assim como eu, simplesmente não tem heróis, mas referências intelectuais? Nem todo marxista revolucionário tem como referências Stalin, o senhor sabe disso? Assim como nem todo capitalista fervoroso admira o brilhante trabalho dos srs. Bush ao comando da nave-mãe capitalista.
Quem o senhor representa? Quais são, retomando a legenda da foto que serve de evidência nesse artigo, a ética e a estética dessa classe que o senhor representa? O terno e a gravata neste país tropical me soam mais patéticos que qualquer outra coisa. Essa é a estética que o senhor defende? É essa a vanguarda que o senhor apoia? Qual é o futuro que o senhor deseja?”
A Veja é uma revista de censura
Quando digo que tentei postar, reitero que o gesto foi em vão. Meu comentário não foi aceito pela Veja. Fiquei preocupado. Haveria eu, de alguma forma, transgredido as regras para se comentar no blogue? Resolvi lê-las:
“Aprovamos comentários em que o leitor expressa suas opiniões. Comentários que contenham termos vulgares e palavrões, ofensas, dados pessoais (e-mail, telefone, RG etc.) e links externos, ou que sejam ininteligíveis, serão excluídos. Erros de português não impedirão a publicação de um comentário.”
Pois bem. Expressei minha opinião. Não usei termos vulgares, palavrões nem ofendi ninguém. Não incluí meus dados pessoais. Não mencionei links externos. O que poderia haver de errado? Resolvi ler os outros mais de trezentos comentários postados e aceitos pelo moderador do blogue. Havia muitos links para sites externos. Havia ofensas, como, ipsis litteris, “Está mais do que na hora de expulsar esta corja de vagabundos fedorentos das universidades públicas” e “Como são feios, não?”. Havia palavrões: “Tem um carinha com a camisa do Pink Floyd, banda de rock britânica formada em Cambridge, Inglaterra. Queria ver ele fazer uma baderna dessa naquela vetusta universidade. Até Russell que era tirado a moderninho pegava ele de porrada.” O que eu havia feito de errado que esses belos comentaristas não haviam feito?
Ah! Foi neste momento que percebi uma regularidade: não havia, entre os mais de trezentos comentários, uma crítica sequer ao artigo do sr. Reinaldo. Todos assinavam embaixo de sua redação, que tanto prega a liberdade. E foi também neste momento que pensei: poxa, mas cadê a minha liberdade, como “moço livre da universidade”, de me manifestar contrário aos argumentos e às ideias do sr. Reinaldo? Cadê meu direito de me revoltar?
A Veja, sempre que apresenta algum dossiê sobre a famigerada ditadura militar, se recorda com muito pesar e tristeza dos terríveis anos da censura prévia. Acontece que, na mesma revista, o funcionamento para participação de seus leitores é o mesmo. Há uma censura prévia que regula os dizeres, que impede a circulação de sentidos que não sejam aqueles por que a Veja luta. Enviei e-mails e mais mensagens para a revista. Tentei postar novamente meus comentários, apelando para o meu direito democrático. Aparentemente, fui ouvido, mas ignorado. A Veja é uma revista que não permite ver, nem que muita coisa seja vista. A Veja é uma revista de censura. Os comentários da Veja, muito bem-localizados, nada mais são do que um “assino embaixo”. Eu não assino.
***
[Phellipe Marcel da Silva Esteves é jornalista, editor e professor, Rio de Janeiro, RJ]