Publicado originalmente pelo objETHOS.
Para o que a grande imprensa em geral não vê no universo político, parece que o jornalismo independente lança luz. Foi assim em duas coberturas específicas do The Intercept Brasil. Na primeira, por meio de apuração jornalística e publicação exclusiva, foi descoberto que, após oito anos sem comparecer na Câmara dos Vereadores do RJ, Fernando Girão – ex-vereador indicado por CPI em que Marielle Franco trabalhou – havia estado no local sete dias antes do assassinato da vereadora do PSOL. Na segunda, ocorrida há duas semanas, foi o lançamento da candidatura de Aécio Neves a deputado federal que recebeu destaque. Enquanto o The Intercept Brasil foi ao local do evento, no interior de Minas Gerais, e produziu uma reportagem crítica a partir dos próprios fatos ocorridos na ocasião, a maioria da mídia convencional ou não cobriu o acontecimento, ou limitou sua apuração ao jornalismo declaratório.
Isso retoma a discussão sobre o papel social da profissão, no que toca o processo de apuração, escolha de acontecimentos e enquadramentos noticiosos, sobretudo em períodos de maior acirramento político e de combate a fake news, como nas eleições deste ano. Discutindo a importância do jornalismo para a cidadania, Koshiyama (2018) afirma que o jornalismo não deve limitar-se a escutar e reproduzir os discursos oficiais- a isso costumamos chamar de relações públicas. A práxis jornalística, pelo contrário, envolve a busca por problematizar estes discursos, investigá-los e checá-los. Por conta disto, é pertinente também diferenciá-la da comunicação. Para Koshiyama (2018), ainda que seja cada vez mais vinculado a empresas de telecomunicações e sofra com limitações do tempo de produção, bem como das condições de trabalho, o jornalismo não pode remover seus princípios constitutivos, que são as buscas pela verdade e pelo interesse público. Caso contrário, se autodestrói, perde sua legitimidade e importância sociais. Há aí latente, portanto, um comprometimento social intrínseco do jornalismo com o desvelamento da realidade, numa busca de se aproximar da verdade, e com a democracia. (VIZEU, 2014).
Gomes (2009) também caminha por este viés, quando observa as duas dimensões do jornalismo: a discursiva e a epistemológica. De acordo com ele, ao jornalismo cabe não só se preocupar com as condições de veracidade do que narra, enquanto estratégia discursiva, que autentica os fatos ou os descreve de maneira verossímil. É necessário garantir por meio de um processo investigativo que o que se diz é verdadeiro. Previsto em suas normas deontológicas, essa busca pela verdade provém da dimensão epistemológica que envolve o jornalismo, enquanto prática discursiva que pretende gerar uma explicação sobre o mundo, ou, em outras palavras, um conhecimento sobre este. (GENRO FILHO, 1987)
Como que contribuindo para este debate reflexivo sobre a prática jornalística, os projetos de fact-checking, iniciados no Brasil também pelo jornalismo independente, têm resgatado esta dupla dimensão da profissão, epistemológica e discursiva, a que Gomes (2009) se referiu. A tarefa principal de projetos com esse perfil, como o Truco, vinculado à Agencia Pública, e o Aos Fatos, é apurar o que é verdadeiro e falso nas narrativas circulantes em sociedade. Este exercício cobra dos jornalistas um maior rigor no seu método e uma maior reflexão sobre a sua prática. Também demonstra o compromisso do jornalismo independente com a defesa da democracia, haja vista que o acesso à informação verdadeira é condição primordial para que os cidadãos possam decidir e atuar na política de forma consciente.
Outra boa ideia que contribui para o modo como o jornalismo atua veio também da Agência Pública, que organizou no mês de abril uma entrevista com seus pares para discutir como problematizar o discurso do candidato à presidência Jair Bolsonaro. Este exercício de se organizar antecipadamente às eleições para encontrar maneiras de desvelar falácias e contradições discursivas do político parece muito oportuna para repensarmos o nosso papel e nossas práticas, sobretudo na cobertura política. Importante ressaltar que muito da entrevista do Jornal Nacional com Bolsonaro na semana passada abordou as contradições discursivas que a Agencia Pública já havia alertado, a exemplo do entrevistado se perfilar como um político que combate a violência, mesmo promovendo narrativas agressivas.
Parece, desta forma, que o jornalismo independente tem buscado maneiras e espaços para refletir mais sobre sua prática profissional do que o jornalismo convencional. Como que consciente de que o jornalismo é um dos palcos principais onde as disputas políticas ocorrem, aquele tem problematizado mais, checado mais, apurado mais. Além disso, tem lançado sua luz sobre acontecimentos comumente não noticiados pela imprensa convencional e proporcionado uma competição mais plural das narrativas circulantes na sociedade. Configura-se então como uma tendência a ser seguida inclusive pela grande imprensa, por servir como exemplo de bom jornalismo, neste momento de crise na profissão e na política nacional em que vivemos.
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Juliana Freire Bezerra é jornalista, doutoranda no Posjor/UFSC e pesquisadora do objETHOS.
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REFERÊNCIAS
GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide – para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987.
GOMES, Wilson. Jornalismo, fatos e interesse: ensaios de teoria de jornalismo. Florianópolis: Insular, 2009.
KOSHIYAMA, Alice Mitika. Jornalismo e direitos humanos: teoria e práticas possíveis. Disponível em: <http://www.intercom.org.br/sis/eventos/2018/resumos/R13-1599-1.pdf>. Acessado em 01 de setembro de 2018.
VIZEU, Alfredo. Jornalismo e Paulo Freire: o conhecimento do desvelamento. Revista Famecos, Porto Alegre, v. 21, n. 3, p. 860-877, setembro-dezembro 2014.