Leio e releio os jornais. Agora, foi Salvatore Cacciola que voltou para trás das grades. Na distante Mônaco, ressalte-se. Jornais impressos e televisivos lembram: o ex-banqueiro beneficiou-se da flexibilização da banda cambial em 1995. Contou com ajuda de funcionários do Banco Central, recordam de passagem. Os jornais O Globo e Folha de S.Paulo vão um pouco mais longe na análise e informam que um desses funcionários foi o ex-presidente da instituição, Francisco Lopes. Ponto. Nada de detalhes.
Leio e releio os jornais. ‘O Senado brasileiro foi para a lata do lixo’, dizem uns. ‘O governo e seu partido conseguiram salvar o senador Renan Calheiros’, dizem outros, ao final do julgamento do presidente do Senado por quebra de decoro. ‘Vamos derrubá-lo’, afirma um senador para lentes e gravadores, um dia após a votação. ‘Lula foge da imprensa’, alardeia uma publicação, aludindo ao pretenso medo que o mandatário teria de se pronunciar sobre o caso. Curiosamente, em outra página do mesmo jornal pode-se ler: ‘`Se o Renan quiser é só ligar que eu o recebo´, afirma Lula’. Retratos de uma comoção que clama pela punição ‘desta execrável exceção à regra’ que seria o senador alagoano.
Mas o que Renan e Cacciola têm em comum? Muita coisa.
‘Isto não tem importância’
Considero o termo ‘mídia golpista’ um exagero de retórica, mas sem dúvida, ao ler e reler os jornais nos últimos dias, tenho visto coisas espantosas. Comecemos pela prisão do ex-banqueiro, meio italiano, meio brasileiro.
Para efeito de comparação, imaginemos que Henrique Meirelles, atual presidente do Banco Central, fosse envolvido em uma suspeita – destaque-se aqui a palavra suspeita – de favorecimento e fornecimento de informações privilegiadas aos integrantes da banca nacional. Imaginemos ainda que o atual governo montasse junto com os diretores do BC um programa de auxílio a esta mesma banca na ordem de, digamos, 27 bilhões de dólares. O tal programa poderia ser batizado de Proer.
Para terminar, imaginemos que, às vésperas da implantação de um novo regime cambial, a maioria esmagadora dos bancos entrasse no mercado comprando dólares, cabendo às instituições sob intervenção deste mesmo Banco Central, como o antigo Banco do Estado de São Paulo, por exemplo, o papel de felizes vendedores da moeda americana. O que leríamos nos jornais?
Pois bem, Salvatore Cacciola é um símbolo vivo de toda essa bandalheira convenientemente esquecida e que jamais resvalou a rampa ou os corredores do Planalto, sob a ótica de boa parte da imprensa, há pouco mais de dez anos. Ao retornar o ex-banqueiro para os holofotes da mídia, apenas a recordação técnica no off do Jornal Nacional: ‘Cacciola recebeu ajuda de funcionários do Banco Central’. Seja lá o que isto quer dizer.
Voltemos ao senador Renan. Um dia antes da votação, o senador Álvaro Dias aparece para o Brasil dizendo: ‘Se Calheiros não for cassado, a culpa será do PT’. Na noite da votação, ao acompanhar um debate entre os principais analistas políticos do jornal O Globo, no canal jornalístico para assinantes do grupo, ouço uma pergunta. ‘Mas pelas contas, senadores do DEM e/ou do PSDB votaram pela absolvição do presidente do Senado, não?’. Resposta: ‘Isto não tem importância, o importante é que realmente o PT foi o fiel da balança, mesmo com as abstenções'(!).
Recurso ao tapetão
Todos os analistas políticos, coincidentemente, esqueceram-se de analisar que o julgamento de Calheiros seria e foi, antes de mais nada, um julgamento político e não ético. Afinal, quando o senador lembrou aos seus pares que todos tinham telhado de vidro, os indecisos se resolveram e os amigos partiram para o deixa-disso. É interessante observar que esta ética, tão avidamente defendida pelos jornalões, não os obriga a investigar acusados e acusadores. Repercutem as denúncias produzidas sabe-se lá em quais circunstâncias, e só.
Esta mesma ética não faz com que muitos profissionais de mídia deixem de lado um papel de porta-vozes de interesses políticos e passem a atuar de maneira mais enriquecedora e independente para o debate. É bastante provável que essa virtude contribuísse de maneira eficaz para asfixiar os Renans e suas práticas, e também as dos oportunistas de plantão, que sentam sobre o próprio passado para, ao lado de jornalistas ‘indignados’, clamarem por justiça.
Ao ler e reler os jornais, vejo que Cacciola e Renan são dois lados de uma mesma moeda. Quando convém calar e tratar as questões de maneira superficial, assim se procede. Quando convém fazer bastante barulho, esta é a tônica. Refletiriam essas práticas a intransigente defesa do interesse público ou a defesa de interesses inconfessáveis à luz do juízo e da pluralidade democrática?
Ao ler e reler os jornais, vejo-me obrigado a dar razão àqueles que, por vezes de maneira tão deselegante, afirmam que, batidos nas votações, alguns setores da sociedade consideram cada vez mais válida a idéia de recorrer ao tapetão, jogar areia nos olhos e empregar todo tipo de expediente que só contribui para enfraquecer ainda mais o espírito republicano e a verdadeira democracia.
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Jornalista