Thursday, 28 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

Uma emissora cada vez menos pública

O anúncio da composição do Conselho Curador da Empresa Brasileira de Comunicação (organização que vai abrigar a nova TV pública) não trouxe surpresas [ver aqui]. Infelizmente. Desde que o processo passou às mãos da Secretaria de Comunicação Social, do ministro Franklin Martins, ficou claro que a composição do conselho, pretensamente representativo da sociedade, seria decidida unicamente pelo Executivo, a partir de critérios próprios.


A TV pública nasce vítima do modelo que o governo criou. Em vez de optar por uma arquitetura pública de participação, preferiu manter o controle e ser responsável direto por todas as indicações. Feita essa opção, recaiu sobre ele o ônus de provar que não era autoritário e que não queria criar a ‘TV Lula’. Fez tanto esforço para isso que criou um conselho conservador e elitista.


Assim, criou-se um aparente paradoxo: no afã de legitimar o projeto da TV pública com setores da direita, o governo abriu mão do caráter público e deu à emissora um perfil governamental. Mais: criou no conselho uma composição que traz uma penca de empresários e nenhum representante dos trabalhadores, seja da comunicação seja do campo geral. Também indicou apenas uma pessoa com atuação no debate das políticas públicas de comunicação (o advogado José Paulo Cavalcanti), que mesmo assim não vinha participando dos debates da TV pública.


Aliás, essa foi a tônica das indicações: nenhum dos escolhidos participou do Fórum de TVs Públicas nem representa setores que vinham se manifestando no debate. Dirão as vozes governistas que esses setores são representativos apenas de um pequeno setor da sociedade. Mesmo se isso for verdade, esse setor (pequeno ou grande) não pareceu digno de representação, a se julgar pela ausência completa de nomes desse campo no conselho. Para piorar, a idéia (positiva) de que o conselho não deve ser composto somente por especialistas acabou sendo tão forte que nenhum representante acadêmico da comunicação foi indicado.


Comitês públicos


Há de se notar ainda a preocupação com a questão da regionalidade e, minimamente, da diversidade étnico-racial e de gênero. No entanto, isso se deu sem diálogo com o próprio movimento negro, indígena ou feminista, o que mostra que definitivamente representatividade não foi um dos critérios nesse processo. Critérios são sempre questionáveis, dirão alguns. É justamente isso que se está fazendo aqui, questionando-os, embora neste caso – um debate sobre uma TV pretensamente pública, ressalte-se – os únicos critérios que valham sejam aqueles decididos pelo governo.


Esse fato ilustra, a bem da verdade, um problema de origem desse conselho. A lógica de um órgão representativo da sociedade escolhido pelo governo, sem sequer um processo de indicação, é paternalista e antidemocrática. Assessores do ministro vêm utilizando o argumento de que ‘no Reino Unido é assim’. Não é. No caso da BBC, a composição do Trust (‘conselho curador’ de lá) parte de um processo de seleção pelo ‘comitê de indicações públicas’, órgão independente que faz esse papel para mais de 1.000 órgãos com participação social.


Esse comitê recebe indicações da sociedade, e faz uma lista de candidatos a serem entrevistados. A partir da fase de entrevistas, entra, como um dos avaliadores, um representante do governo inglês. Depois disso, as indicações são passadas ao secretário de Estado, depois ao primeiro-ministro e, finalmente, à rainha (que não manda nada, como indica o próprio cargo, mas mostra que a decisão está acima do governo da vez).


Além disso, embora haja, no final do processo, esse ‘filtro’ de governo, trata-se de um mecanismo democrático de um país que é parlamentarista há séculos, com uma forte tradição de debate público e de equilíbrio na composição desses espaços. Ainda assim, o BBC Trust já foi criado com dezenas de pesos e contrapesos, checks and balances, mecanismos de consulta, medidas para evitar o conflito de interesses dos conselheiros, comitês públicos que analisam a programação, isto é, vários mecanismos que estabelecem um forte compromisso dos trustees com o conjunto da sociedade. Por aqui, se depender da análise prévia, começamos mal.


Opção consciente


De toda forma, o governo não precisaria atravessar o Atlântico se quisesse encontrar modelos mais democráticos de representação. Há nas próprias estruturas do Estado brasileiro excelentes referências. Tanto o campo da Saúde quanto o da Habitação, por exemplo, têm modelos avançados de gestão, com conferências periódicas e conselhos representativos, eleitos pelos setores envolvidos por meio de mecanismos democráticos.


Se não quisesse sair da própria área da comunicação, o governo poderia adotar o modelo do Comitê Gestor da Internet, que também tem sua composição determinada por voto direto dos setores interessados.


Embora esses conselhos tenham atribuições diferentes do que aqui discutimos, todos eles encontraram formas democráticas de a sociedade escolher seus representantes. Mais que isso, nenhum desses conselhos sofre do corporativismo que o governo usa como justificativa para a não adoção desses modelos.


Se não foi por falta de opção nem de aviso, o governo fez uma opção clara e consciente de modelo. Resta torcer para os críticos desta proposta estarmos errados. Não é o que indicam os prognósticos, mas para quem acredita na necessidade de uma TV verdadeiramente pública no Brasil, manter a esperança é questão de sobrevivência.

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Do Observatório do Direito à Comunicação