Se há uma coisa evidente no relatório divulgado pela Secretaria-Geral da Organização Internacional da Polícia Criminal (Interpol) é que a mesma não tem condições de afirmar, com 100% de segurança, que os documentos contidos nos laptops supostamente pertencentes ao líder das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc), Luis Edgar Devia Silva, conhecido por seu pseudônimo de guerrilheiro, Raúl Reyes, são autênticos. Pior: a Interpol nem sequer tem condições de determinar se os laptops entregues para análise pelo governo colombiano de fato pertenciam ao mesmo, que foi morto em território equatoriano pelo exército colombiano junto com pelo menos outros 15 guerrilheiros. A íntegra do documento está disponível no site da organização:
A grande mídia fez o estardalhaço de praxe, vinculando o relatório da Interpol a uma confirmação de envolvimento entre o presidente venezuelano Hugo Chávez e o equatoriano Rafael Correa às FARC, organização que foi colocada pelos EUA na lista daquelas classificadas (por eles) como ‘terroristas’. O site do Globo.com não poderia ser mais direto: ‘Laudo da Interpol liga Chávez às Farc’. O Estadão tampouco pestanejou: ‘E-mails mostram ligação direta de Chávez com as Farc’. O UOL foi mais comedido: ‘Relatório da Interpol ‘coloca Chávez na defensiva’, diz Alencastro’.
Ex-funcionário norte-americano
Não é de agora que Chávez, que combate abertamente a globalização capitalista (ou ‘globaritarismo’, como preferia Milton Santos) liderada pelos EUA, é persona non grata da grande mídia. Mais que isso: sem a menor cerimônia, os grandes veículos de comunicação venezuelanos articularam a tentativa de golpe de Estado contra Chávez em 2002, golpe este que contou com os aplausos de toda a grande mídia latino-americana, inclusive a brasileira.
Desta vez, seguindo o ‘protocolo’, a mídia distorceu as conclusões da Interpol, que tudo o que pôde afirmar é que os laptops entregues pelo governo colombiano não contêm arquivos criados, modificados ou suprimidos desde o dia 1º de março – data em que Reyes e os demais guerrilheiros foram assassinados – até o dia da análise.
Mais ainda: a Interpol admite, no documento, que a verificação feita pelo organismo não implica na ‘validação da exatidão dos arquivos de usuário que contém, da interpretação que qualquer país possa fazer dos ditos arquivos, nem da sua origem‘. Ou seja, exceto que os arquivos contidos nos laptops apresentados pela Colômbia não sofreram alterações, a Interpol não pode afirmar mais nada, nem mesmo se os tais arquivos são autênticos (embora seu secretário-geral, Ronald Noble, um ex-funcionário do governo norte-americano, tenha claramente apoiado, durante a coletiva à imprensa, a versão do governo colombiano de que os computadores realmente pertenciam às Farc).
O ataque como defesa
Alvaro Uribe, presidente da Colômbia, tem todos os motivos do mundo para colocar Chávez e Correa em maus lençóis, como avaliou esta semana o diretor do Conselho para Assuntos Hemisféricos (Coha, na sigla em inglês), Larry Bins. O Coha é uma organização de informação e investigação, sem fins lucrativos, criada há 30 anos e sediada em Washington, D.C. Bins lembra, por exemplo, que Uribe está acossado pelos escândalos que envolvem ele próprio, seu partido e membros da sua família em íntimas relações com o cartel de Medellín e os chefões do narcotráfico (Pablo Escobar e os irmãos Ochoa, por exemplo).
‘Além disso’, continua Bins, ‘Uribe provavelmente não logrará um Acordo de Livre Comércio com os EUA, o que será um grande golpe em seu prestígio. Ele está buscando que se gere uma forte denúncia contra Equador e Venezuela e uma compreensão da posição da Colômbia por parte da União Européia e Estados Unidos, já que está sendo celebrada a reunião anual da União Européia e América Latina, que é um fórum muito importante’. Bins lembra ainda que uma denúncia como esta ‘redimiria’ Uribe ante os olhos do governo francês, que negociava junto às Farc a libertação de Ingrid Betancourt e não viu com bons olhos o assassinato de Reyes.
Nunca é demais lembrar que Uribe saiu com péssima imagem da operação que culminou com a execução de Reyes, outros 15 guerrilheiros e provavelmente alguns reféns. Além de invadir o território equatoriano, Uribe mentiu ao dizer a Correa, num primeiro telefonema, que os guerrilheiros haviam invadido a fronteira enquanto trocavam tiros com o exército colombiano. Descobriu-se depois que o grupo estava, de fato, acampado em território equatoriano e não chegou a disparar um único tiro, pois foi atacado enquanto dormia. De uma cajadada só, Uribe violou a soberania de um país vizinho e assassinou gente que estava dentro dele. E, na estratégia de usar o ataque como defesa, passou em seguida a acusar o presidente equatoriano de colaborar com as Farc.
Pretexto para invasão
Difícil acreditar na credibilidade de um presidente que, ainda por cima, está mergulhado até o gogó em denúncias de envolvimento com o narcotráfico, cujos cartéis são inimigos das Farc. Um relatório da Universidade de George Washington aponta as ligações estreitas de sua família com o chefão Pablo Escobar. Esse relatório, por sua vez, é baseado numa investigação confidencial da U.S. Defense Intelligence Agency (veja aqui).
Sendo comprovadamente o principal aliado dos EUA na América Latina, de quem já recebeu US$ 4 bilhões desde 2000, Uribe, com o golpe dos laptops, agrada imensamente a seu ‘chefe’, pois de uma solapada só desanca dois adversários – a Venezuela, que se tornou pedra no sapato do tio Sam, e o Equador, que já avisou que não renovará acordo, em 2009, para manutenção da base norte-americana de Manta, estratégica para as operações dos EUA na Colômbia e que está em território equatoriano.
Informações e relatórios falsos internacionalmente produzidos serviram de pretexto para invasão de um determinado país, agora mergulhado numa ocupação que já dura cinco anos e contabiliza um milhão de pessoas mortas, segundo observadores internacionais. Se a América Latina não abrir os olhos, o império vai encontrar a brecha pela qual anseia para fazer algo parecido nas bandas de cá.
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Jornalista, bacharel em Direito e especialista em Direitos Humanos