Em maio de 2003, a repórter Janaína Leite deixou com barulho a sucursal de Brasília da IstoÉ Dinheiro. Uma cópia da carta de demissão enviada à direção da Editora Três circulou por todas as redações, com uma acusação de assédio moral contra o então chefe da sucursal. Este foi prestigiado pelo diretor de redação da Dinheiro, Carlos José Marques, e a história acabou por ali mesmo. Mas os personagens voltariam, três anos depois.
Marques virou recentemente diretor editorial da Três e assumiu também a chefia da IstoÉ. E eis que ele surge agora em nova carta, publicada neste Observatório no dia 27 de março por Luiz Cláudio Cunha [ver remissão abaixo]. Nela o editor de Política da sucursal de Brasília descreve o comportamento profissional de Marques. Mostra uma clonagem de capa da Business Week na Dinheiro, relata que o executivo costuma afirmar não gostar de ‘pobres e pretos’, e assim por diante.
Na era da internet, diante de situações assim, logo comentamos – lamentamos ou apoiamos – os libelos. Situo-me pessoalmente no segundo caso, de apoio irrestrito à carta de Cunha, pois trabalhei na Dinheiro, corroboro e testemunho suas afirmações. Igualmente vi páginas serem clonadas, ouvi frases do tipo ‘se um pobre entrar na revista (em suas páginas), eu saio pela outra porta’, e assim por diante. Envergonhava-me por estar ali e não via qualquer possibilidade de praticar um jornalismo verdadeiro, até ser demitido, em 2002 – não tinha o perfil para a publicação.
No que se refere à defesa dos direitos coletivos, porém, as cartas revelam pelo menos uma distorção – que não invalida a iniciativa de nossos colegas. Parte dos assuntos relatados em ambos os casos deveria estar no mínimo na Comissão de Ética do Sindicato dos Jornalistas. Sabemos que não é o caso. Lavamos a alma ao lê-las, os que não suportamos mais essas aberrações jornalísticas, mas a efemeridade estrutural do formato das ‘denúncias’ por e-mail não permite medidas – administrativas ou jurídicas – que poderiam ajudar a formar nas redações uma cultura menos predadora.
Seguirá o corporativismo?
Enquanto isso, o sindicato paulista vai para mais uma batalha eleitoral. Nas últimas eleições, somente uma chapa, a da situação, concorreu, por conta da impugnação da chapa 2. Este ano quase aconteceu o mesmo, mas problemas nas duas chapas adiaram o processo. A chapa que visa renovar nossa representação não tomou os cuidados mínimos para cumprir as exigências do edital (como a de cada membro estar sindicalizado há algum tempo), apesar de ter sido prejudicada uma vez – eles querem mudar tudo, mas são distraídos. E a situação, sedenta pelo poder, significa a continuidade – hipótese que parte do pressuposto de que tudo vai bem no nosso sistema de representações.
E, regido pela indiferença, o nosso sistema de representações não vai bem por conta da distância entre jornalistas e o sindicato – seja qual chefia ele tenha. As cartas de Janaína e Cunha evidenciam que a cultura do medo do desemprego começa a abrir caminhos (poucos, ainda) para o desabafo. Mas o desabafo não basta. É necessário criar situações institucionais para amplificar esse desabafo e dar a ele contornos conseqüentes – e não apenas literários, uma sensação possível ao se ler um texto tão bem escrito quanto o de Cunha.
Conseqüências para a clonagem cara-de-pau de fotos e diagramações inteiras? Confesso que não sei as providências que poderiam ser tomadas. Suponho apenas que existam. O Conselho Federal de Jornalismo não foi aceito nos moldes propostos, mas talvez para esse tipo de coisa ele pudesse ter alguma utilidade. Fenaj? Sindicatos? O que cada um tem a dizer? Seguirá o corporativismo – enquanto alguns de nossos profissionais ameaçam diariamente a nossa credibilidade, ingrediente da democracia?
Ações coletivas
Racismo ou classismo explícito no centro das redações? Ora, todos sabemos que no primeiro caso há leis a serem cumpridas. Se um jornal do Brasil não gosta de publicar fotos de negros, a que pena ele estará sujeito? Quando trabalhei na Dinheiro, em 2001, minha primeira viagem foi a uma cidade na região metropolitana de Belo Horizonte, para falar da alta incidência de silicose – uma doença letal – entre os mineiros da região. Foi uma boa pauta do Leonardo Attuch, que viera do Estado de Minas e não estava ainda bloqueado pelo universo cosmético de abordagens propostas por Carlos José Marques.
Pois bem: eu e a fotógrafa Ciete Silvério achamos um personagem fantástico. Um coveiro. Pobre. Negro. Ele percorria eletricamente os túmulos e ia descrevendo, uma a uma, a causa mortis: ‘Silicose’. ‘Silicose’. ‘Morte natural’. ‘Silicose’. ‘Silicose’. ‘Silicose’. ‘Coração’. ‘Silicose’. ‘Acidente’. ‘Silicose’. Decidi ainda no cemitério abrir o texto dessa forma e pautei fotos com a Ciete. Mas ela me avisou: ‘Eles não gostam’. Aí, decidiu criar alternativas – sem evidenciar demais os traços do coveiro, recortando-o com (lindas) imagens poéticas. A foto saiu na revista, enquadrando apenas os pés do coveiro.
Fatos assim devem nos motivar a repensar nossas instituições. Ou até a pensar na criação de outras, que visem reduzir drasticamente a cota de cinismo nesse tipo de jornalismo, em pleno século 21. Revistas como a Dinheiro descobriram o filão editorial (e comercial) da cobertura de responsabilidade social. Talvez esteja na hora de as empresas serem mais informadas sobre determinadas práticas irresponsáveis. Para decidir melhor onde injetarão o dinheiro dos anúncios.
Gritemos, mas nos organizemos: das cartas abertas a ações coletivas que elevem nossa profissão à sua plenitude.
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Editor da Agência Repórter Social