Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Vale a pena morrer pelo jornalismo?

Anna Politkovskaya, a destemida jornalista russa que foi baleada e morta por um criminoso desconhecido nas ruas de Moscou em 2006, escreveu sobre o lado sombrio do reino de Vladimir Putin: a guerra brutal na Chechênia; a corrupção e a bandidagem que começavam nos altos escalões do governo; a ausência de um judiciário independente; a ‘magia negra burocrática’ capaz de envenenar – ou mesmo extinguir – uma vida bastando uma ordem para fazê-lo.


Anna – mãe de dois filhos, morta aos 48 anos – escrevia frases que se adequavam ao tema de suas reportagens: a prosa dela era em geral dura e estridentemente direta, infestada de verdades inconvenientes. Uma passagem típica de Is Journalism Worth Dying For? (Vale a pena morrer pelo jornalismo?, em tradução livre), a nova coletânea de artigos escritos por ela para o jornal russo Novaya Gazeta, descreve uma jovem chechena recolhendo os restos do cérebro do pai ‘espalhados pela parede, reunindo-os numa sacola para poder enterrá-los’. Este livro, que às vezes lembra um catálogo de horrores da Inquisição, não é para os leitores de estômago fraco.


Is Journalism Worth Dying For? é tocante em muitos níveis, e um deles é o breve vislumbre da autora que Anna teria sido se tivesse começado sua carreira em outro lugar e outra época. Sua ternura e sua sociável qualidade humana enchem as margens desse volume, lançando sobre os horrores que ela testemunhou uma luz ainda mais revoltante.


Durante uma breve viagem a Paris, por exemplo, ela se reuniu com um editor chamado Robert Laffont e encontrou um prazer nabokoviano na agradável estética do nome dele. ‘A uvular vibração do ‘r’, duas vezes. O florido ‘la’ formando um lírio onde um terno ‘l’ se funde num beijo dos lábios com aquele ‘a’ especial para produzir um som semelhante ao la-la-la de um bebê desdentado.’


Ao observar uma companhia argentina de tango, ela enunciou este veredicto certeiro sobre o romance em seu próprio país: ‘A paixão ao estilo russo é uma viagem do ponto A até o B. No ponto A o casal se beija, e no ponto B os dois já estão maltratando os colchões’. A vida na companhia de um cachorro favorito era como ser submetido a ‘uma constante terapia intravenosa de amor’, especialmente porque aquele cachorro, Martyn, tinha aprendido a protegê-la dos mal-intencionados.


Difícil imaginar


Is Journalism Worth Dying For? é um livro que traz um contínuo testemunho moral; seus momentos mais leves são relativamente poucos. Mas o leitor tentará manter esses trechos ao alcance para suportar as passagens mais sombrias.


Anna escreveu muitos livros, entre eles A Small Corner of Hell: Dispatches from Chechnya (2003) (algo como Um cantinho do inferno: reportagens da Chechênia), Putin’s Russia (2005) (A Rússia de Putin) e A Russian Diary (Um Diário Russo), publicado postumamente em 2007.


A coletânea que temos diante de nós hoje foi publicada pela primeira vez no ano passado na Grã-Bretanha sob o título Nothing but the Truth (algo como Nada além da Verdade).


O subtítulo daquela edição, Selected Dispatches (Reportagens Escolhidas), reflete com mais precisão o conteúdo do livro do que o subtítulo usado na edição americana (Final Dispatches, ou Reportagens Finais). Este livro contém alguns dos últimos trabalhos de Anna, incluindo matérias investigativas que podem ter levado diretamente a seu assassinato. Mas a maior parte do seu conteúdo é composta por artigos dos últimos seis anos da vida dela.


A tradução, feita por Arch Tait, é competente apesar dos momentos menos idiomáticos. Faz muita falta neste volume um ensaio biográfico introdutório para familiarizar os leitores com o alcance da vida e da obra de Anna, e para contextualizar estes artigos. Mas estas são queixas menores. O livro é um expressivo documento do heroísmo jornalístico.


Is Journalism Worth Dying For? começa com um incisivo ensaio encontrado no computador de Anna após sua morte. Ela abria o texto definindo o significado da palavra koverny, que quer dizer ‘palhaço’, e descrevendo uma geração de jornalistas russos como ‘um grande picadeiro cheio de kovernys cujo trabalho é manter o público entretido’ e glorificar o status quo.


Os jornalistas que não se submetiam eram considerados não apenas párias, mas também possíveis alvos (como ocorreu com ela) de ‘envenenamento, detenção, ameaças feitas pelo correio e pela internet, ameaças de morte feitas pelo telefone’. Ela fazia pouco do eventual glamour doentio que alguns pareciam encontrar neste estilo de vida. ‘Talvez isso seja visto como uma brincadeira de espionagem’, escreveu ela. ‘Nada poderia ser mais falso. Detesto esta maneira de viver.’


As reportagens de Anna sobre a Chechênia começam com quatro palavras: ‘Estas são histórias revoltantes’. Ela enxergava a guerra como um genocídio. Documentou as execuções em massa, assim como os estupros, os escalpelamentos, homens e mulheres queimados vivos, testículos esmagados, choques elétricos, dedos esmagados em batentes de porta. Quando ela diz que os métodos do torturador eram ‘tão brutais e patológicos que prefiro não os descrever’, é difícil imaginar o quanto eles poderiam ser chocantes, pois ela omitiu pouquíssima coisa.


História recente


Anna era dedicada aos fatos, à ideia de que descobrir a verdade pode trazer a libertação para seres humanos ou para um país. Após um sequestro, ela realizava o tipo de trabalho detetivesco elementar que os promotores russos se recusavam a fazer. Ela procurava nomes e números e agitava os resultados dos exames forenses diante de rostos importantes.


Veja a azeda eloquência que ela imprime a simples dados numéricos: ‘Eles não querem saber, por exemplo, o número de identificação do transporte blindado usado pelos mascarados para sequestrar Umkhanov e Isigov sem nem sequer olhar para seus passaportes. Este número era 4025. Da mesma maneira, não se interessam pelo nome de código do veículo – 88 – usado nas comunicações via rádio; nem pelo código do oficial encarregado do comando da operação – 12. A placa do caminhão do Exército que acompanhou o sequestro era O 1003 KSh’. Ela fez o trabalho todo, faltando apenas aplicar um mata leão nos que cometeram os sequestros.


Um sarcasmo desiludido pode ser sentido por entre as fissuras. Ela ofereceu ‘prêmios de guerra’ para os culpados das piores atrocidades na Chechênia. Quando documentos importantíssimos desapareceram do gabinete de um promotor russo, ela reagiu murmurando ‘grande surpresa’ e destacando, num tom mordaz, que o jornal dela não tinha perdido suas cópias daqueles papéis.


Anna era capaz de distinções surreais. Sobre um comandante militar fanfarrão, ela disse: ‘Ele pode ter atirado em alguém, mas duvido que seja capaz de esmurrar uma pessoa’.


A construção de suas frases permanece na memória. Sobre outro líder corrupto, ela observou: ‘No calor do comando do sequestro ele lança o braço para frente, como Lenin sobre o vagão blindado na Estação Finlândia em 1917’.


Sobre a história recente da Rússia, ela ofereceu esta classificação: ‘A era de Brejnev foi caracterizada por uma demência cínica. Sob Yeltsin, a regra era pensar grande, roubar grande. Sob Putin, vivemos numa era da covardia’. Coincidentemente, Anna Politkovskaya foi assassinada no dia 7 de outubro, o aniversário de Putin.

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Jornalista e crítico de livros, escreve para o The New York Times