Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Veja, a gaveta profunda

Nascido de uma denegação da notícia em seu estado quimicamente puro, o chamado jornalismo de teses vingou nos EUA, sobretudo com as revistas Time e Newsweek. O modelo é simples: o leitor qualificado não tem muito tempo para analisar as notícias, e apesar das desconversas, dispõe de uma incapacitação permanente para avaliar a fundo os trambiques e sinecuras do poder público. Portanto, o que seduz o leitor em favor do jornalismo de teses é que você recebe de barato um kit de sobrevivência sobre como pensar o mundo. Substantivo, mas com rótulos adjetivos acrescentados ao longo dos anos, o jornalismo de teses, tão prenunciado por esse modelo, não requer, ainda que receba, muitas interpretações: você ensina ao médico (aquele que vai na quimbanda de sexta-feira porque ninguém é de ferro) o que ele deve pensar sobre o mundo e sobre as cousas. A fúria dos críticos de mídia bestifica os desinformados. Que jamais cogitam pensar sobre a violação que esse tipo de jornalismo impõe ao nosso conceito básico de cidadania.

Eis o ponto: o modelo Time/Newsweek seguido por Veja necessita que os fatos do mundo sejam singularmente etiquetados: é o jornalismo das taxonomias. Foi assim, por exemplo, que quando surgiu o MST, a capa de Veja foi um João Pedro Stédile caracterizado de belzebu. Foi assim, também, que quando da morte de PC Farias, em 23 de junho de 1996, na praia do Guaxuma, em Alagoas, Veja empinou a capa ‘Caso encerrado: homicídio seguido de suicídio’. Sem que nos permita articular interesses claros sobre o porquê desse tipo de jornalismo ser feito assim, só nos resta a resposta editorial mais simplória. A canga oligárquica a comandar algumas publicações precisa se fiar na gabolice das teses prontas para que seu o leitor, de resto preguiçoso e atavicamente desinformado, possa respirar aliviado e dizer ‘até que enfim vemos uma revista com coragem de dizer toda a verdade’.

‘Estamos negociando’

Quando o bruxo da calle Maipú, Jorge Luís Borges, redigiu o seu Livro dos Seres Imaginários, estava justamente criticando essa capacidade humana de acreditar, com mais fervor, em tudo que lhe traz uma catalogação, uma taxonomia, uma etiquetação que se lhes explique o mundo com definições potáveis: eis o porquê de Borges ter criado figuras bizarras como os tigres que só se encontram com o imperador da China às quartas-feiras.

Se você notar, verá que nos últimos anos a Editora Globo promoveu um remanejamento no tipo de manchete que coloca em suas revistas customizadas. Até que foi uma idéia do ex-editor geral, Paulo Nogueira, a de abusar das interrogações nas capas das revistas. É a forma de dizer ao leitor que, nesse universo do jornalismo de teses, há uma zona de respiro em que o consumidor de notícias pode projetar as suas indagações.

Veja um exemplo: quando caiu o último avião da TAM, há alguns anos, em Congonhas, a capa de Veja foi taxativa: ‘Foi o piloto’. Uma semana depois, a revista Época, da Editora Globo, reagiu. Colocou em sua capa uma foto do pai do piloto com uma indagação em letras garrafais: ‘Será que foi o piloto?’

O problema com o jornalismo de teses é a inevitabilidade de que a realidade (ainda bem) é maior do que suas teses. Por essas e por outras é que todo repórter de Veja, até mesmo os que estavam em níveis do confortável ao principesco, chegaram a pedir as contas quando lhes era pedida uma frase encomendada para legitimar a tese da revista.

Vai aqui um episódio pessoal. Corria o governo do presidente Sarney, em 1988. A inflação seria de seus 30% ao mês. O governo segurava a corrosão dos salários com o que chamava de URP (Unidade de Referência de Preços). Se a inflação subia 30%, o salário deveria subir 30%. O ex-ministro Bresser Pereira ameaçou cortar a URP. Os sindicalistas protestaram. Os militares protestaram. Então a capa encomendada aos repórteres pela diretoria de Veja era uma com o então ministro-chefe do EMFA (Estado Maior das Forças Armadas), Paulo Roberto Camarinha. O jornalista mais brilhante que conheci, o Elio Gaspari, me encomenda a frase de algum sindicalista que falasse bem de Paulo Roberto Camarinha. Mas, passados apenas então três anos da abertura democrática, obviamente nenhum sindicalista queria falar bem de um brigadeiro. Para não perder o emprego, tive que ligar, às 5h da manhã de um sábado, para o líder sindical Antonio Rogério Magri, da CGT, pedindo autorização para poder vitaminar uma frase sua. Ele me respondeu de uma maneira bem Monica Lewinski: ‘Você pode botar na minha boca o que você quiser desde que eu saia no abre da capa de Veja neste domingo’. E assim se fez.

Há também o episódio em que o editor de religião chegou para um diretor de Veja referindo que havia obtido uma belíssima frase de um presidente da CNBB em favor do médium Chico Xavier, que deveria ser capa de Veja e acabou não sendo, é óbvio. Esse editor disse para a diretoria: ‘O presidente da CNBB me disse que Chico Xavier é um fenômeno!!!’. Um dos diretores da revista retrucou: ‘Como??? Não acredito que o presidente da CNBB tenha dito isso de um médium! Ele disse mesmo???’. Ao que o pobre editor atalhou: ‘Dizer ele não disse, mas estamos negociando a frase…’

‘Credos pessoais’

Esse tipo de prática do jornalismo de teses calcado no modelo Time/Newsweek funciona muito bem na maioria das vezes. Também funciona o modelo de você dispor de pessoas que gostem de aparecer em revistas de circulação nacional, mesmo que com frases encomendadas. Afinal, é o mesmo modelo que a geopolítica americana sempre adotou a ponto de criar monstrengos como o ex-xá da Pérsia Reza Pahlevi, e também o ex-ditador nicaraguense Anastásio Somoza – aliás, sobre quem o ex-presidente Franklin Delano Roosevelt falou: ‘Ele é um grande filho da puta, mas pelo menos é o nosso filho da puta’. O jornalismo de teses necessita de santos, e também de canalhas rematados para sustentar o seu modelo de negócio.

Só assim podemos entender o porquê de Veja Online ter divulgado, na quarta-feira (17/3), entrevista do ex-governador José Roberto Arruda, do Distrito Federal, em que ele afirmou ter ajudado de diversas formas ilegais diferentes políticos conhecidos. O advogado de Arruda, Nélio Machado, protesta. Diz que a entrevista foi feita em setembro de 2010, portanto às vésperas das eleições gerais.

A pergunta que não quer calar agora é justamente o porquê de Veja ter engavetado e só agora publicado uma entrevista extemporânea. Qual será a tese de Veja que só agora pôde ser endossada pela declaração fora de época? Essa é uma resposta que Veja Online deve aos seus leitores.

Aliás, acaba de sair nos Estados Unidos a melhor obra sobre o assunto. Se chama Blur, e é de autoria de Bill Kovach e Tom Rosentiel. Kovach, meu amigo, remeteu o livro há dez dias. Há um capítulo que talvez possa explicar o chamado jornalismo de teses – que Bill Kovach chama de ‘jornalismo de afirmação’. Kovach explica assim esse tipo de jornalismo:

‘Trata-se de uma nova mídia de política que constrói a sua lealdade às informações menos na acurácia e verificação do que em afirmar os seus credos pessoais para audiências, e assim tende a edulcorar informações de forma a servir aos propósitos dessa publicação’.

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Jornalista