Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Veja perdeu todos os limites”

Para o jornalista Luis Nassif, a revista Veja perdeu todos os limites ao publicar uma matéria em que não pode provar nada do que denuncia. Para ele, trata-se de uma operação para livrar Daniel Dantas da ação movida pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal. ‘É um momento triste na história da República: ele mostra que Dantas conseguiu uma ampla influência no Judiciário, em três partidos políticos e em grande parte da mídia’, diz Nassif.


A revista Veja denunciou um esquema de grampos que vigiariam o Supremo Tribunal Federal e integrantes do governo federal. O que levou, no dia seguinte, o presidente Lula e o ministro Gilmar Mendes a reunirem-se e, finalmente, à suspensão da direção da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Na terça-feira (2/9), em entrevista à imprensa, Lula declarou:




‘Se algum de vocês [referindo-se aos jornalistas presentes] souber algo – porque a fonte conversou com os jornalistas e não comigo –, e quiserem facilitar a investigação, podemos resolver logo o problema. Do contrário, vamos ter de investigar com muita profundidade’.


Isso porque a Veja declarou que as gravações não existem mais e utiliza a lei para não revelar o nome da fonte da reportagem. IHU On-Line conversou por telefone com Luis Nassif sobre essa crise gerada por um veículo de comunicação tão importante no país, mas, segundo ele, em decadência.


Nassif, que lançou uma série chamada ‘Dossiê Veja’, em que chama de antijornalismo o trabalho da revista, fala sobre a relação dessa denúncia dos grampos no STF com o caso Daniel Dantas, sobre um possível conflito entre o ministro do STF e Tarso Genro e, ainda, sobre a posição da Polícia Federal diante desse grande problema deflagrado no país.


Luis Nassif é jornalista e diretor superintendente da Agência Dinheiro Vivo. Além disso, desempenha as funções de comentarista econômico da TV Cultura, membro do Conselho do Instituto de Estudos Avançados da USP e do Conselho de Economia da FIESP. Possui um dos blogs mais acessados e respeitados do país.


Sua entrevista.


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Nesse caso dos grampos, foi a reportagem da Veja que motivou a reunião entre Lula e Gilmar Mendes e, por fim, o afastamento da direção da Abin. Como o senhor relaciona esse caso com o caso Daniel Dantas?


Luis Nassif – É, escancaradamente, uma operação para livrar o Daniel Dantas desse inquérito e desse processo. A Veja perdeu todos os limites. O que espanta é ver um presidente do Supremo Tribunal Federal, baseado nos elementos que a revista coloca, sair acusando a Abin e o Paulo Lacerda, justamente os alvos do Daniel Dantas. É um momento triste na história da República: ele mostra que Dantas conseguiu uma ampla influência no Judiciário, em três partidos políticos e em grande parte da mídia. Eu acho que, para o jornalismo, o preço do descrédito é muito grande. A opinião pública inteira está percebendo o tipo de jogada feito pela Veja. E o que ela faz desmoraliza o jornalismo. Sabemos que este já foi usado para outros propósitos, mas o que existia antes era um pouco a história de troca de favores entre empresas e instituições e alguns veículos de mídia. Era um negócio antiético, mas mais light. Agora, quando temos essa contaminação da cobertura da imprensa por essas pessoas que estão claramente acusadas por formação de quadrilha e afins, entramos num terreno muito complicado e desmoralizante para um dos poderes fundamentais da sociedade, que é a imprensa de opinião.


A Veja tem uma grande tiragem e passou a praticar um jornalismo falso, como tenho mostrado na minha série de reportagens. No entanto, há, concomitantemente, uma cumplicidade com isso por parte dos jornais. Essa matéria sobre os grampos publicada por ela não passaria num curso básico de jornalismo. Então, vem o presidente do STF, avaliza a matéria e faz com que ela se transforme em institucional. Há poucos jornalistas com coragem para questionar essa falta de consistência da matéria. Há outro aspecto que precisa ser levado em conta: a Operação Satiagraha foi muito abrangente. Ela entrou no seio da corrupção brasileira e pegou magistrados, políticos e empresas jornalísticas. Com isso, temos esquemas pesados montados por advogados, por políticos e por jornalistas. A Veja gosta muita de comparar o Brasil aos Estados Unidos e dizer que nosso país é atrasado e que os estadunidenses são o supra-sumo da modernidade. São mesmo. Só que nós estamos entrando hoje num ponto muito similar ao dos anos 1930 nos Estados Unidos, quando existiu uma luta nacional contra o crime organizado e a imprensa aderiu ao crime. É complicado isso, pois o maior fator de atraso que temos é a revista Veja, inserida dentro de um tipo de jornalismo manipulador. Com a internet, as coisas até melhoraram, porque há alternativas à falta de competência jornalística. A Veja está fazendo uma operação de alto risco para poder fazer essas jogadas todas de forma profissional. Dentro da Abril, eles são chamados de ‘aloprados’ da Veja. Isso causa perplexidade, indignação, e o preço é a desmoralização da imprensa. Pelo menos, a internet não deixa a grande imprensa falar sozinha.


E deve partir de quem exigir uma mudança de paradigma da influência que a Veja possui?


L.N. – Deve partir da Justiça. Na semana passada, a condenação do Diogo Mainardi a três meses de prisão foi um passo muito importante do Judiciário. A Veja passou a usar a calúnia e a difamação com a ajuda de dois pistoleiros – o Mainardi e o Reinaldo Azevedo – para atacar a honra de todo mundo e entrou num jogo muito pesado. Essa estratégia é desproporcional, porque a Abril partiu para uma avaliação custo x benefício, ou seja, começou a se perguntar: o que ganhamos se começarmos a difamar ou caluniar o fulano? Ganha porque desacredita o ‘fulano’ e continua com liberdade para manipular isso. O que isso custa? Cem mil, 150 mil reais por processo. É um preço que eles pagam. Essa avaliação é horrorosa, faz o jornalismo cair na barbárie. Quando condenam um deles, como no caso do Paulo Henrique, esse jogo acaba. No Rio Grande do Sul, fizeram isso com o Jorge Furtado. Ele foi alvo de assassinato de reputação também. A ação contra esse tipo de publicação às vezes demora meses ou anos para ser resolvida. Como é que fica a sua reputação nesse período? Como fica a sua família e seus filhos nessa história? O que a Veja está fazendo é coisa de quadrilha. Eu nunca vi algo parecido.


Essa suspensão da direção da Abin foi uma atitude correta por parte do presidente?


L.N. – O presidente é gato escaldado. Já sabe que enfrentar o STF e a imprensa juntos pode significar um risco e adotou essa medida. Ele aproveitou que a escuta pegou o pessoal da sua base e assim pode reagir contra a Operação Satiagraha. Agora, ele está numa ação de alto risco, porque validar a Veja – que é uma revista que está caindo em descrédito – é um risco. Se você dá à Veja o direito publicar um factóide como esse – porque ainda não temos uma prova real sobre esse grampo – e o poder de afastar a direção da Abin, sabendo que toda a estratégia jurídica do Dantas consistia em tentar comprovar que o Paulo Lacerda tinha interferido na Operação Satiagraha para poder anular o inquérito, há outro risco alto. O Lula mandou investigar afastando a direção da Abin para não ter contaminação nos resultados. Ou seja, deu tudo o que o pessoal do STF pediu. Se houver uma investigação séria agora, quem fez paga. A Veja vai ter de mostrar suas provas. O desafio é existir uma investigação séria. Claro que não podemos botar a mão no fogo pela Abin, mas é preciso ficar claro que quem acusa tem que ter a comprovação. Aquela maluquice que a Veja fez não é prova. Nenhum país civilizado, com poder Judiciário efetivo, deixa aquilo ser considerado uma matéria. Vamos ver o resultado das investigações. A partir delas, saberemos se o Lula é um enxadrista ou uma pessoa temerosa.


Em que sentido a reunião de Gilmar Mendes com Lula interfere no trabalho do ministro Tarso Genro?


L.N. – Eu conversei com o ministro hoje [2/9/2008], que me disse que esse período faz parte de um jogo complicado. Veja bem, essa questão dos direitos individuais precisa ser preservada e você não pode dar plenos direitos para o pessoal sair grampeando a torto e direito. Vivemos hoje dentro de uma democracia clássica, ou seja, numa sociedade onde a imprensa é o fator para conter excesso de poder do Executivo. No entanto, como há um alto grau de manipulação por parte da imprensa, se criou uma ameaça grande ao direito individual. Esse poder diz respeito a fazer qualquer ataque e não dar bola para o resto. Qual é o maior desafio que temos em relação à defesa dos direitos individuais? É saber se defender de esquemas como os que a Veja monta. Aqui no Brasil, em nome da liberdade de imprensa, você pode assassinar reputações, fazer uma matéria fajuta e dizer que a Constituição garante sigilo de fonte… Onde nós vamos parar? Podemos dizer que o ministro Gilmar Mendes assumiu de uma forma obcecada a defesa do Dantas e deixou o Supremo Tribunal Federal numa má situação, mas os outros ministros estão deixando a história correr para não comprometer ainda mais a imagem da instituição.


Casos como esses estão gerando desconfortos dentro da Polícia Federal. Em sua opinião, que perigos giram em torno dessa demonização da PF?


L.N. – Falar da Polícia Federal é um negócio complicado. É uma organização muito envolvida em muitos problemas e foi feita uma mudança fundamental em sua estrutura pelo Paulo Lacerda, há tempos. Daí surge uma geração nova aí, não viciada ainda, que não quer entrar no esquema e quer realizar um trabalho sério de investigação. Esse pessoal é o típico funcionário que está seguindo o manual, que é a lei, a Constituição. Se esse pessoal for desestimulado, a única força que se insurgiu de forma profissional contra esses abusos e esquemas de corrupção vai ser jogada fora. É um momento complicado, é uma guerra da civilização contra a barbárie. A barbárie, nesse caso, está sendo representada, infelizmente, por órgãos de imprensa. Esse é o problema.


E como esse problema pode ser resolvido?


L.N. – É importante deixar claro que toda essa operação visa beneficiar o Dantas. Isso cria um constrangimento para o Lula que não é fácil. Essa investigação tem a garantia do acompanhamento do Ministério Público. A Polícia Federal tem dentro da sua corporação grupos se digladiando. Se for provado que houve manipulação, a Veja e o Gilmar Mendes entram numa situação complicada. Se confirmar que foi uma ordem da Abin, quem se complica é o governo. O que eu acho mais provável é que não vai se confirmar que foi da Abin e que não vai se chegar ao grampeador, porque a Veja é uma revista sem-vergonha e não tem provas do que diz. Eu acho que vai ficar como um negócio não esclarecido, o que fortalece a posição do Dantas. Também vai depender muito da sinalização que o Ministro da Justiça e o Lula fizeram para a Polícia Federal para continuar investigando essa Operação Satiagraha.


A quem interessa livrar o Dantas dessa investigação?


L.N. – Todos os que foram subornados por ele, ou seja, três partidos políticos e jornalistas que foram pagos por ele. Interessa às publicações que fizeram acordos obscuros com ele, a juízes que se venderam para ele. É muita gente. Ele está no centro da corrupção brasileira; é uma coisa imensa.


Podemos dizer que o STF e o ministério da Justiça estão em crise?


L.N. – Não sei se estão em crise. O ministro Gilmar Mendes quis provocar uma crise, mas o governo não passou recibo. A condução do Tarso Genro em relação a esses episódios foi infeliz. Nesse sentido, há uma certa ligação entre ele e o Gilmar, mas este último extrapolou. O segundo habeas corpus foi incompreensível.


No mês passado, durante a Rodada Doha, percebeu-se que a intenção do Brasil estava dentro da questão da remessa de lucros maior do que os investimentos internos e assim atrairia capital de curto prazo. Quem sairia privilegiado se as negociações tivessem ido de acordo com as intenções do governo brasileiro?


L.N. – O Brasil perderia claramente. Eu não entendi a posição do Lula de querer uma coisa a qualquer preço, porque o que se oferecia da parte agrícola lá não é suficiente para o país. Se a intenção do governo brasileiro fosse aprovada, seriam abertas as tarifas de pontuação de um conjunto importante de produtos em troca de ganhos não substanciais na área de subsídios num momento em que o câmbio brasileiro é um diferencial negativo muito grande. Se saísse do jeito que se queria, nós teríamos problemas sérios. A sorte é que a China e a Índia tiveram mais clareza sobre seus interesses.


Dentro dessa questão ainda, que perspectivas você tem para o próximo encontro em Doha?


L.N. – Eu continuo acreditando naquilo que escrevi no livro Os cabeças-de-planilha (São Paulo: Ediouro, 2007), ou seja, o mundo está no final de um processo de liberação financeira que tende a refluir. A tendência, se for bater com que ocorreu em outros períodos da história, será a de um nacionalismo mais exacerbado, uma defesa maior dos interesses nacionais, assim como aconteceu com a China, com a Índia e a Rússia. Estes sistemas de livre comércio são, geralmente, adotados por quem já atingiu um certo grau de desenvolvimento mais elevado. Quando o país atinge esse grau de desenvolvimento, pode entrar nas regras internacionais de livre comércio que, obviamente, beneficia os países mais competitivos em detrimento dos menos competitivos. Os países emergentes que seguem essas regras não conseguem se desenvolver, porque já são mais fracos, menos competitivos. Na medida em que a China quer se tornar uma potência, ela vai se insurgir contra isso.