Dois acontecimentos de expressiva repercussão jornalística determinam que o tema em questão mereça ser revisitado, a despeito de seu teor já haver sido amplamente explorado na última edição deste Observatório, tanto no artigo de Ricardo Setti (‘O poder toma conta do noticiário’, remissão abaixo), quanto sugerido pela sondagem do OI, na urna eletrônica, durante a semana, com a pergunta: ‘São legítimas as queixas do governo em relação à mídia?’.
Os dois fatos dizem respeito diretamente às tensionadas relações a envolverem a dualidade mídia e governo, com base nas peculiaridades da vida brasileira: 1) o jantar entre o presidente da República e 17 jornalistas, na casa da colunista Teresa Cruvinel, na quarta-feira (11/2); 2) a denúncia contra o assessor direto do chefe da Casa Civil. Por ordem, tratemos do primeiro.
Praticamente, todos os veículos de informação cederam espaços para o registro. Com o intuito apenas de reavivar a memória do leitor, selecionamos a nota publicada no ‘Painel’, da Folha de S.Paulo (13/2/04), com o título de ‘Novo formato’:
‘O jantar de Lula anteontem com a imprensa teve peculiaridade jamais registrada na gestão FHC. Em vez de receber os representantes de diferentes veículos em dependências do governo, o presidente optou por encontrá-los na casa de uma jornalista – a colunista Tereza Cruvinel, de O Globo‘.
Na mesma edição do jornal, em outra matéria de Eliane Cantanhêde e Kennedy Alencar, constava a seguinte explicitação:
‘Participaram, além do presidente e da primeira-dama, Marisa Letícia da Silva, 17 jornalistas de sete jornais (‘Folha’, ‘O Globo’, ‘O Estado de S.Paulo’, ‘Jornal do Brasil’, ‘Valor Econômico’, ‘Correio Braziliense’ e ‘Estado de Minas’) e da TV Globo’.
Parcerias sinistras
A importância maior ou menor do fato acima ilustrado deriva do tipo de olhar que foca o acontecimento. É possível que, para muitos, a notícia nada contenha de especial. Todavia, é também provável que, para outros tantos, principalmente ligados ao campo da comunicação, a mesma notícia produza efeitos diferentes. A avaliação decorre exatamente dos modos de vinculação que o sistema midiático brasileiro firma com a política governamental. O que, portanto, o jantar promovido pela colunista pode informar? De início, fique claro que qualquer um tem o direito de, em sua residência, oferecer reuniões tantas quantas bem desejar, bem como convidar quem bem queira. Todavia, algo se modifica na esfera da liberdade privada quando esta se vê contaminada pela esfera pública. Partir da anfitriã o convite não guarda em si nada de especial. O mesmo, porém, não se pode reconhecer da parte do convidado, estando este investido do cargo de presidente da República. Menos ainda, se o propósito do jantar, ainda que em clima informal e descontraído, supõe um encontro entre políticos e jornalistas
É óbvio que a colunista, na condição de anfitriã, revela, no mínimo, em relação a seus colegas, um grau superior – quanto mais não seja, prestígio – que lhe é autenticado pelo comparecimento da maior autoridade da nação. Convenhamos que a atitude eticamente adequada seria ou a recusa, ou a realização do jantar em dependências oficiais, retirando assim qualquer carga de maior intimidade entre colunista política e autoridade governamental.
É bom recordar que o jantar na casa da colunista do Globo se deu num período no qual a TV Globo vem promovendo campanhas, a exemplo do que tem exibido o ‘Jornal Nacional. Em reforço ao que se está analisando, caberia indagar os critérios para a indicação dos convidados. Por que somente a TV Globo se fez representada? Por que a ausência de representantes de outros veículos de comunicação (revistas)? Nenhuma dessas perguntas faria o menor sentido, se a natureza e o propósito do jantar não tivessem contaminação com a gestão pública. Enfim, terá faltado ao presidente algum apoio crítico, no sentido de alertá-lo quanto a possíveis futuras especulações, ou o próprio presidente ignorou-as?
O enredo do primeiro caso, intencionalmente ou não, acaba fixando conexão com o fato seguinte (a denúncia contra o assessor Waldomiro Diniz da Silva), já que a revista responsável pela publicação (Época) pertence à mesma organização à qual serve a colunista e anfitriã. O jantar se deu no dia anterior ao comunicado que a direção da revista fez, tanto para o acusado quanto para fontes do governo. Está aí um quadro interessante. Num dia o governo é adulado; noutro, é exposto a incômoda situação. Ou será que os dois fatos estarão absolutamente divorciados? Bem, nesse caso, temos de concluir que o país vive o auge da esquizofrenia, visto que, no interior de um mesmo grupo empresarial, vigoram práticas radicalmente opostas aos seus interesses.
Como exercita-se aqui o olhar desvinculado do regime da informação, vale arriscar uma leitura diferente acerca dos fatos. Haverá a possibilidade de os dois acontecimentos (o jantar e a reportagem) estarem afinados com as expectativas do governo? A rigor, a denúncia, apesar do esforço da oposição, concede certa proteção às hostes governamentais. Afora desdobramentos vindouros (se houver), a imagem do governo, no máximo, está atingida quanto à sua possível ingenuidade. O próprio chefe da Casa Civil, diretamente ligado ao denunciado, tem seu perfil quase traçado como vítima (e nada impede que seja verdadeira tal condição).
Entre ‘Cachoeira’ e tempestade, mais um mar revolto
No que se refere à mais recente denúncia, a mídia, pelo menos num primeiro momento, não soube (ou não quis) avançar quanto a obscuridades que cercam o novo episódio sobre corrupção (ou prevaricação) que, segundo parece, é personagem permanente na política brasileira.
A princípio, há de se reconhecer que o fato divulgado, inaugurado pela revista Época, terá deixado em todos certa perplexidade. É claro que a reação de espanto não deriva da singularidade da prática denunciada – como já afirmamos, ela é recorrente. São outras as razões a motivarem o estranhamento. A reportagem saiu sem que nada de mínima suspeita a precedesse. Cabe, portanto, promover aqui o elenco de questões, com o propósito de tentar compreender-se o enredo de uma historieta que, no seu início, parece repleta de lacunas. O que segue, pois, é a tentativa de sinalizar o comportamento jornalístico, menos subordinado ao regime severo da informação e mais sintonizado com o jornalismo investigativo e indagador, ou seja, aquele que procura privilegiar o ato crítico de problematizar a realidade. Então, vamos a algumas questões.
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Afinal, a quem cabe o bônus da denúncia? A matéria dá conta de que repórteres da revista teriam tido acesso às fitas recebidas por procuradores da República no dia 4 de fevereiro. Aí já há o primeiro problema: em que níveis se opera o tráfico de influências entre veículos de comunicação e setores públicos. Outra versão surgiu, envolvendo a figura do senador Antero Paes de Barros que teria recebido as fitas anonimamente. Ainda diferente hipótese: terá havido uma ação triangular entre procuradoria, senador e repórteres? É importante tentar obter-se o esclarecimento definitivo, porque disto poderá advir a compreensão de outras tantas questões embutidas na ocorrência.**
Ficou patente que o suposto ‘furo’ jornalístico da revista nada engrandece o exercício da profissão. ‘Furo’ teria sido se, à época (sem trocadilho), os repórteres houvessem descoberto a trama. A leitura da reportagem, porém, demonstra que tudo não passa de mera transcrição de fitas e reprodução de material, até então, sob a custódia do aparelho judiciário, o que reforça a cobrança sobre tráfico de influências, fato a casar-se também com o ‘jantar’ da colunista anfitriã.**
A propósito, por que a mídia, bem como os políticos de oposição, não levaram adiante a reportagem publicada pela revista IstoÉ (2/7/03), na qual a figura do agora denunciado estava associada a pendências judiciais? O referido fato foi relembrado pela matéria ‘Uma longa lista de suspeitas’ (Jornal do Brasil, 15/02/04).**
É sabido que o deputado Antonio Biscaia (PT-RJ), egresso da promotoria, com destacada atuação nos processos ligados à contravenção, no início de 2003, em reunião de governo, manifestou-se contrário à nomeação de Waldomiro Diniz da Silva que, na ocasião, estava cogitado para presidir a Caixa Econômica. A despeito das razões expostas pelo deputado, a cúpula do governo não lhe deu crédito. Por quê? Mais, as edições dos jornais de domingo já revelam que há sete meses travavam-se, entre parlamentares, conversas a respeito do que agora veio a público. Que a oposição tenha reservado o momento considerado mais rentável para a divulgação, é compreensível, embora eticamente condenável. O que, entretanto, não se explica são o silêncio e a inércia do governo, em não se antecipar, livrando-se de um problema futuro.**
Que razões terão movido o empresário e bicheiro (assim é apresentado na reportagem) Carlos Augusto Ramos, também conhecido como Carlinhos Cachoeira, a reter (moeda de troca?) por tanto tempo provas comprometedoras? Terá ele esgotado a paciência quanto a benefícios prometidos e não cumpridos. Bem, prometidos por quem? Descumpridos por quem?**
A gravação terá sido iniciativa de Cachoeira ou a pedido de outrem?**
Não parece estranho alguém que, até a data do delito (maio de 2002), com dez anos de serviços prestados ao PT, pedisse dinheiro para campanha eleitoral, em favor de duas candidatas rigorosamente rivais entre si (Benedita e Rosinha)?**
Não é estranho que um episódio, filmado em maio de 2002, venha a público exatamente quando o denunciado passou a assessorar o novo ministro da coordenação política, Aldo Rebelo?**
Não é estranho que o único assessor determinado para lidar com o novo ministro tenha sido determinação do chefe da Casa Civil? Esclareça-se: o único nome que Aldo Rebelo não indicou para sua equipe foi o de Waldomiro Diniz da Silva.**
Será que setores do governo já estavam a par de que havia a iminência da denúncia e, por isso mesmo, a Casa Civil tratou antes de deslocar para o novo empossado a pessoa indesejada?**
Não é estranho que alguém, por doze anos, preste serviços a políticos de uma mesma legenda, sem jamais a ela filiar-se? Pelo que foi noticiado, o acusado serviu, desde o caso PC, ao atual chefe da Casa Civil, a ponto de dividir com ele o apartamento funcional, em Brasília. Em seguida, foi designado por José Dirceu para assessorar o ex-governador Cristovam Buarque. Adiante, sob mesma indicação, presidiu a Loterj e, por fim, preterido para presidir a Caixa Econômica, tornou-se assessor direto da Casa Civil. É estranho que, com um histórico de alongada convivência, os mais íntimos jamais tenham detectado qualquer irregularidade. Ou terá sido apenas um ‘desvio’ ocasional? Bem, a julgar pela avaliação do deputado Biscaia, elementos suficientes contra a figura de Waldomiro Diniz da Silva já existiam.**
Não é estranho que Cachoeira tenha rapidamente dado um pronunciamento, seguido por igual comportamento do denunciado, em que isenta de qualquer responsabilidade a figura de José Dirceu, incriminando quem já é alvo da acusação? Segundo consta na matéria ‘Bicheiro diz ter sido vítima de extorsão’ (Folha de S. Paulo, 15/02/04), Cachoeira declarou que: ‘[…] O ministro José Dirceu é sério. Isso é um caso isolado de uma ovelha negra. Hora nenhuma ele [Waldomiro] comentou sobre José Dirceu’.Até certo ponto, a defesa feita pelo ‘negociante’ é ingênua. A inocência do chefe da Casa Civil pode ser perfeitamente obtida por outros caminhos mais convincentes que não esse. Afinal de contas, no mundo das transações ilícitas, um dos princípios consiste sempre em proteger-se a figura maior. Com isso, apenas estou querendo fixar que não é o fato de o nome de alguém deixar de ser mencionado, em meio a acertos de trapaças, que, a priori, isenta de culpa quem quer que seja.
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Se o empresário e bicheiro demonstra agora tanto empenho em proteger a imagem do governo, não teria sido mais lógico que ele próprio, decidido a exibir o fato, fizesse chegar ao Planalto a fita, permitindo ao governo, sem desgaste, a sumária exoneração do acusado? Tal procedimento teria eliminado, na raiz, qualquer respingo em outros.**
Não é estranho que, justamente nos dois casos rumorosos a sombrearem o PT (o assassinato do prefeito de Santo André, Celso Daniel e, agora, propina de campanha), o nome de José Dirceu, em algum nível, seja mencionado? Serão meros e casuais indícios? Haverá, partindo de algum setor, interesse em macular (ou esvaziar / fritar) a imagem do chefe da Casa Civil?Enfim, resta aguardar que caminho tomará o caso e observar que passos a mídia dará. Uma coisa, contudo, é certa. Os dois episódios aqui selecionados oferecem rentáveis explorações críticas, no tocante às fronteiras, um tanto difusas, entre mídia e governo.
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Ensaísta, doutor em Teoria Literária pela UFRJ, professor titular do curso de Comunicação das Faculdades Integradas Hélio Alonso (FACHA), Rio de Janeiro.