Monday, 04 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1312

Wikiliquidação do império?

A divulgação de centenas de milhares de documentos confidenciais, diplomáticos e militares pela WikiLeaks acrescenta uma nova dimensão ao aprofundamento contraditório da globalização. A revelação, num curto período, não só de documentação que se sabia existir mas à qual durante muito tempo foi negado o acesso público por parte de quem a detinha, como também de documentação que ninguém sonhava existir, dramatiza os efeitos da revolução das tecnologias de informação (RTI) e obriga a repensar a natureza dos poderes globais que nos (des)governam e as resistências que os podem desafiar. O questionamento deve ser tão profundo que incluirá a própria WikiLeaks: é que nem tudo é transparente na orgia de transparência que a WikiLeaks nos oferece.

A revelação é tão impressionante pela tecnologia como pelo conteúdo. A título de exemplo, ouvimos horrorizados este diálogo – Good shooting. Thank you – enquanto caem por terra jornalistas da Reuters e crianças a caminho do colégio, ou seja, enquanto se cometem crimes contra a humanidade. Ficamos a saber que o Irã é consensualmente uma ameaça nuclear para os seus vizinhos e que, portanto, está apenas por decidir quem vai atacar primeiro, se os EUA ou Israel. Que a grande multinacional farmacêutica Pfizer, com a conivência da embaixada dos EUA na Nigéria, procurou fazer chantagem com o procurador-geral deste país para evitar pagar indemnizações pelo uso experimental indevido de drogas que mataram crianças. Que os EUA fizeram pressões ilegítimas sobre países pobres para os obrigar a assinar a declaração não oficial da Conferência da Mudança Climática de dezembro passado, em Copenhague, de modo a poderem continuar a dominar o mundo com base na poluição causada pela economia do petróleo barato. Que Moçambique não é um Estado-narco totalmente corrupto, mas pode correr o risco de o vir a ser. Que no ‘plano de pacificação das favelas’ do Rio de Janeiro se está a aplicar a doutrina da contra-insurgência desenhada pelos EUA para o Iraque e Afeganistão, ou seja, que se estão a usar contra um ‘inimigo interno’ as tácticas usadas contra um ‘inimigo externo’. Que o irmão do ‘salvador’ do Afeganistão, Hamid Karzai, é um importante traficante de ópio. Etc. etc. num quarto de milhão de documentos.

Decisões com base em mentiras

Irá o mundo mudar depois destas revelações? A questão é saber qual das globalizações em confronto—a globalização hegemônica do capitalismo ou a globalização contra-hegemônica dos movimentos sociais em luta por um outro mundo possível—irá beneficiar mais com as fugas de informação. É previsível que o poder imperial dos EUA aprenda mais rapidamente as lições da WikiLeaks que os movimentos e partidos que se lhe opõem em diferentes partes do mundo. Está já em marcha uma nova onda de direito penal imperial, leis ‘anti-terroristas’ para tentar dissuadir os diferentes ‘piratas’ informáticos (hackers), bem como novas técnicas para tornar o poder wikiseguro. Mas, à primeira vista, a WikiLeaks tem maior potencial para favorecer as forças democráticas e anticapitalistas. Para que esse potencial se concretize são necessárias duas condições: processar o novo conhecimento adequadamente e transformá-lo em novas razões para mobilização.

Quanto à primeira condição, já sabíamos que os poderes políticos e econômicos globais mentem quando fazem apelos aos direitos humanos e à democracia, pois que o seu objectivo exclusivo é consolidar o domínio que têm sobre as nossas vidas, não hesitando em usar, para isso, os métodos fascistas mais violentos. Tudo está a ser comprovado, e muito para além do que os mais avisados poderiam admitir. O maior conhecimento cria exigências novas de análise e de divulgação. Em primeiro lugar, é necessário dar a conhecer a distância que existe entre a autenticidade dos documentos e veracidade do que afirmam. Por exemplo, que o Irã seja uma ameaça nuclear só é ‘verdade’ para os maus diplomatas que, ao contrário dos bons, informam os seus governos sobre o que estes gostam de ouvir e não sobre a realidade dos fatos. Do mesmo modo, que a táctica norte-americana da contra-insurgência esteja a ser usada nas favelas é opinião do consulado-geral dos EUA no Rio. Compete aos cidadãos interpelar o governo nacional, estadual e municipal sobre a veracidade desta opinião. Tal como compete aos tribunais moçambicanos averiguar a alegada corrupção no país. O importante é sabermos divulgar que muitas das decisões de que pode resultar a morte de milhares de pessoas e o sofrimento de milhões são tomadas com base em mentiras e criar a revolta organizada contra tal estado de coisas.

Uma nova energia mobilizadora

Ainda no domínio do processamento do conhecimento, será cada vez mais crucial fazermos o que chamo uma sociologia das ausências: o que não é divulgado, quando aparentemente tudo é divulgado. Por exemplo, resulta muito estranho que Israel, um dos países que mais poderia temer as revelações devido às atrocidades que tem cometido contra o povo palestino, esteja tão ausente dos documentos confidenciais. Há a suspeita fundada de que foram eliminados por acordo entre Israel e Julian Assange. Isto significa que vamos precisar de uma WikiLeaks alternativa ainda mais transparente. Talvez já esteja em curso a sua criação.

A segunda condição (novas razões e motivações para a mobilização) é ainda mais exigente. Será necessário estabelecer uma articulação orgânica entre o fenômeno WikiLeaks e os movimentos e partidos de esquerda, até agora pouco inclinados a explorar as novas possibilidades criadas pela RTI. Essa articulação vai criar a maior disponibilidade para que seja revelada informação que particularmente interessa às forças democráticas anticapitalistas. Por outro lado, será necessário que essa articulação seja feita com o Fórum Social Mundial (FSM) e com os media alternativos que o integram. Curiosamente, o FSM foi a primeira novidade emancipatória da primeira década do século e a WikiLeaks, se for aproveitada, pode ser a primeira novidade da segunda década. Para que a articulação se realize, é necessária muita reflexão inter-movimentos que permita identificar os desígnios mais insidiosos e agressivos do imperialismo e do fascismo social globalizado, bem como as suas insuspeitadas debilidades a nível nacional, regional e global. É preciso criar uma nova energia mobilizadora a partir da verificação aparentemente contraditória de que o poder capitalista global é simultaneamente mais esmagador do que pensamos e mais frágil do que o que podemos deduzir linearmente da sua força. O FSM, que se reúne em fevereiro próximo em Dacar, está a precisar renovar-se e fortalecer-se – e esta pode ser uma via para que tal ocorra.

******

Sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal)