Friday, 15 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Zero zero alguma coisa por cento

Uma entrevista do governador Aécio Neves, na terça-feira (14/8), em São Paulo, gerou dois leads diferentes – um no Portal do Estadão, outro no Estadão impresso. A versão online dizia que Aécio tinha sinalizado para uma ‘possível aliança a médio prazo com PT’; a versão impressa preferiu a suíte sobre as falhas de comunicação do PSDB, que o Estadão já tinha destacado na sua edição do domingo anterior. Em artigo postado quinta-feira (16) no blog Verbo Solto, deste Observatório, Luiz Weis destacou o que chamou de ‘discrepância’ entre os leads, sob um tanto bombástico título ‘Uma coisa online, outra coisa no papel‘.

Weis não disse – nem precisava dizer –, mas seu texto insinuava que 1) uma das matérias tinha de estar errada; e que 2) bastaria confrontar uma matéria com a outra para saber quem noticiou melhor e quem noticiou pior.

Esse método ‘direto’ de análise de técnica jornalística – uma matéria contra a outra – pode produzir graves distorções de avaliação. Que tal imaginar que, em vez de uma estar certa e outra, errada, pode ser que as duas estejam erradas? Ou que as duas estejam certas?

A avaliação correta tem de comparar as duas matérias – aí sim – com o seu fato gerador, no caso, o teor da entrevista de Aécio. Confrontando as duas matérias com as aspas ditas pelo governador, surgem evidências esclarecedoras.

Diversidade saudável

Na entrevista, alguém perguntou a Aécio sobre a possibilidade de aproximação entre PSDB e PT. Ele respondeu exatamente o seguinte: ‘Acho que no curto prazo isso é muito difícil, mas acho que não é impossível a médio prazo’.

A uma pergunta hipotética, produziu-se uma resposta hipotética. Mas o que se viu foi que a resposta hipotética acabou virando uma declaração política afirmativa.

É como se alguém perguntasse ao presidente do Santos se Ronaldo Fenômeno poderia jogar no clube e ele respondesse: ‘No curto prazo, é muito difícil, mas no médio prazo não é impossível’. Aí o repórter turbina o lead e incendeia a manchete: ‘Santos anuncia que Ronaldo vem aí’. É o que eu chamo de transformação de tempo: num passe de mágica, o que era mera hipótese ganha foros de fato concreto.

Uma regra básica vital do jornalismo político é que uma pergunta hipotética só vira lead em duas circunstâncias: 1) se for muito, muito bombástica (e esta não era, porque Aécio já disse isso incontáveis vezes); 2) se a entrevista for de um vazio constrangedor (e aí o melhor é não publicar nada). Na entrevista de Aécio, não ocorreu nenhum dos dois casos.

A matéria impressa seguiu outra regra geral do jornalismo: a suíte é sempre bem-vinda. No domingo anterior, dois dias antes da entrevista de Aécio, o Estado de S.Paulo tinha publicado duas páginas analisando a incapacidade de o PSDB se posicionar como partido de oposição. As matérias foram minhas e deram um diagnóstico da principal falha dos tucanos: eles são ‘ruins de comunicação’. Quando Aécio bateu na mesma tecla, a afirmação virou lead, porque reforçava a nossa matéria dominical.

Discordo de Weis quando ele afirma que é um descalabro leads diferentes entre o portal e o jornal impresso. Não é. Repórteres diferentes, editores diferentes, métodos de redação e edição diferentes produzem matérias diferentes. Não é raro dois repórteres que cobrem o mesmo evento descobrirem leads diferentes. E essa diversidade é saudável, não condenável – a não ser em casos extremos que revelem erros de avaliação de um deles.

Exposição antecipada

Em seu artigo, Weis reconhece que ‘devem ser raros os leitores que, tendo se informado primeiro na edição online de um periódico sobre determinado assunto, voltem a se deter nele ao folhear a sua edição impressa’.

Tem razão. Tirante os pauteiros, essa faixa navega aí na base do zero vírgula, zero zero alguma coisa por cento.

Se é assim, por que espezinhar dois repórteres, colocando-os sob crivo público de terem errado no lead, numa ‘discrepância’ que – o próprio autor do artigo reconhece – terá sido percebida por praticamente ninguém?

Talvez o equívoco seja de foco. Valeria mais produzir um texto comparativo dos trabalhos executados pelos repórteres online (sempre premidos a produzir muitas matérias à velocidade do som, redigindo rápido, sem releitura, o que apuraram) e os repórteres impressos (que têm mais tempo para elaborar o apurado e para redigir com mais esmero), checando o efeito que esses textos têm sobre os dois tipos de leitores que os consomem.

Ou então avaliar o efeito da exposição antecipada da matéria no online sobre a matéria que o repórter redigirá mais tarde para o impresso. Eu mesmo muitas vezes troquei de lead para não repetir o que tinha sido exposto exaustivamente no online durante todo um dia – e que ficara velho. Esse tipo de abordagem interessaria a bem mais que zero zero alguma coisa por cento.

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Repórter do Estado de S.Paulo