Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Zonas escuras na pauta econômica

Quer entusiasmar um pauteiro de economia? Fale em aumento da carga tributária. Ele continuará excitado se o assunto for o imposto pago pela pessoa física. Será capaz de mandar um repórter entrevistar um desses especialistas que medem o peso da tributação em qualquer fase do ano e somam alhos com bugalhos para dizer que o país tem excesso de normas. Pauteiros e editores também ficam animados – hoje muito mais que há alguns anos – quando o assunto é vitória do Brasil contra os Estados Unidos num processo a respeito de algodão.

Mas essa animação tem efeito limitado. É insuficiente para garantir uma boa cobertura, por exemplo, de um conflito entre Estados e União por causa de questões tributárias, mesmo que a briga seja importante e possa render, se bem esmiuçada, uma boa história. Quanto à agricultura, fica fora do radar durante a maior parte do tempo. É hora de cuidar das lavouras de verão, mas quantos editores e pauteiros se lembram disso?

Não é só uma questão de mais ou menos interesse. Desinteresse e desinformação tendem a reforçar-se mutuamente e isso cria zonas de sombra no jornalismo. Histórias boas e objetivamente importantes são perdidas por despreparo das equipes. Pior para o leitor e pior para o debate público de grandes temas.

Exemplo número 1 – O atraso fiscal

A maior parte dos jornais noticiou a briga entre governadores e o ministro da Fazenda, Antonio Palocci, por causa de 900 milhões de reais de compensação fiscal, mas nenhum foi a fundo na discussão do assunto. Os governadores anunciaram a decisão de suspender a liquidação de créditos fiscais de empresas exportadoras enquanto o governo federal não transferisse aos estados aqueles 900 milhões de reais. Esse dinheiro é parte de um total de 5,2 bilhões de reais destinados, segundo a justificativa oficial, a compensar os Tesouros estaduais pela aplicação da Lei Kandir. Essa lei isentou do Imposto sobre Circulação e Mercadorias (ICMS), o principal tributo estadual, as exportações de produtos primários e semi-elaborados. Os manufaturados já eram isentos.

Por essa lei, os estados receberiam durante alguns anos uma compensação do governo federal. Depois, a transferência seria extinta. Por pressão dos governadores, o pagamento foi prolongado. Os critérios de cálculo mudaram, mas o dinheiro continuou sendo transferido, sempre com alguma briga na hora de fixar o montante.

O problema só existe porque: 1) uma boa reforma tributária tornaria dispensável a Lei Kandir, mas essa reforma nunca foi feita e aquela em tramitação no Congresso é muito deficiente; 2) o governo federal continuou a aceitar o argumento das perdas alegadas pelos governadores, mas essa alegação é hoje muito discutível. É difícil sustentá-la tanto pela fórmula original das compensações quanto pelo critério da renúncia fiscal. O tempo passou e o próprio aumento das exportações de primários e semi-elaborados, facilitado pela isenção fiscal, produziu mudanças na economia dos estados.

Na prática, os governadores mostram preferir o velho e defasado sistema tributário, desde que possam contar com o benefício da Lei Kandir desvirtuada.

O noticiário ficou longe de todos os detalhes que poderiam render uma boa discussão. Repórteres simplesmente repetiram o argumento das perdas, sem perguntar se ainda há perdas, de fato, quase dez anos depois de entrar em vigor a Lei Kandir. Os editores mais audaciosos publicaram uma explicação sumária de como se situam nesse jogo a União, os estados e as empresas, mas não tocaram no problema de fundo, que é o sistema tributário internacionalmente defasado. Um grande problema foi tratado como mais um conflito entre a fome de dinheiro dos governadores e a tentativa malandra do Ministério da Fazenda de congelar a verba.

Exemplo número 2 – A agricultura na lona

A primavera chegou, voltou a chover e é hora de plantar, mas em setembro a indústria vendeu apenas 2.048 máquinas agrícolas – 45,9% menos que um ano antes. Neste ano, em nove meses, as vendas no mercado interno foram 38,7% menores que no mesmo período de 2004. O dinheiro anda curto para os agricultores, principalmente para os mais afetados pela seca do primeiro semestre. Não é um problema pequeno.

Apesar da crise, a produção de alimentos tem sido suficiente para manter os preços muito bem comportados há muitos anos. Além disso, o agronegócio exportou até setembro 32,48 bilhões de reais e gerou um superávit de 28,72 bilhões de reais – 87,9% do excedente comercial obtido pelo Brasil. Mas não houve muito choro nem vela, nos grandes jornais, quando a Associação Nacional dos Fabricantes de Veículos Automotores, a Anfavea divulgou, na quinta-feira (6/10), o relatório mensal de produção e vendas.

O destaque foi para as vendas de automóveis, como era previsível. A Folha de S.Paulo publicou num pé de página, em uma coluna, uma nota curta, mas bem-feita, sobre as máquinas agrícolas e sobre a crise no campo. Gazeta Mercantil e Valor deram matérias maiores. Estado de S.Paulo e O Globo desconheceram a crise agrícola refletida nos números da Anfavea.

Jornais especializados, como Gazeta Mercantil e Valor, têm mais espaço para uma cobertura mais ampla, dirão alguns leitores. O argumento é bom, mas duas outras verdades também devem ter algum peso: 1) os dois jornais dedicam bom espaço, e com resultado apreciável, à cobertura política e a assuntos fora de sua especialidade; 2) os jornais de cobertura geral gastam muito espaço, nos cadernos de economia, com matérias de época – vendas no Dia das Mães, encomendas de Natal e assim por diante. Época de plantio, pelo visto, é muito menos importante, embora o agronegócio (lavoura, criação, indústria de insumos e indústria processadora) represente, segundo especialistas, uns 40% do Produto Interno Bruto.

Esse par de exemplos aponta para algo muito mais importante que as duas histórias sub-aproveitadas. Todo dia os melhores jornais do mundo deixam de cobrir uma porção de grandes assuntos e jogam no lixo um monte de reportagens bem-feitas e interessantes. O problema é outro. A maioria dos jornais – há exceções, naturalmente – optou pela informação rápida e pelo tratamento epidérmico dos assuntos, preparou seu pessoal e organizou suas equipes para isso.

Uma das conseqüências é o desperdício de talentos, que não faltam nas redações. Outro resultado é a perda de relevância: para que gastar tempo com jornais que não oferecem mais que a televisão – e isso na melhor hipótese?

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Jornalista