Ao contrário dos EUA (2016) e do Brasil (2018), a Alemanha não sofreu o impacto da disseminação de fake news de grupos comprados através de aplicativos. Mesmo assim: o plano que levou Trump à Casa Branca e Bolsonaro ao Palácio da Alvorada são bem similares, até porque o seu alinhavar saiu da gaveta do mesmo autor, Steve Bannon.
A imprensa sempre foi desafiada por governos antidemocráticos e fascistas, que percebem nela “fonte de mentiras e conspirações” com intuito específico resultante de algum plano maquiavélico, traçado pelo inimigo.
Lügenpresse (Imprensa mentirosa)
A expressão, que já era veiculada por católicos conservadores com forte ranço antissemita, foi “requentada” na primeira metade de 1939 (antes do início da Segunda Guerra Mundial) por Joseph Goebbels, ministro propagandista de Hitler em discursos sobre sua teoria de conspiração do plano dos judeus e comunistas para o domínio do mundo.
O partido Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla) surgiu em 2014. Sua maior bandeira era o protesto contra o euro e o aparato burocrático da União Europeia. Nesse meio tempo, o partido é a terceira força política em âmbito federal, com 91 deputados na Câmara Baixa do Parlamento. Seu escorregar para a direita, até chegar bem perto da cena neonazista, fez muitas cabeças rolarem, além de torná-lo um Clube do Bolinha.
Antes do partido sair triunfante das eleições federais de 2017, a mídia alemã tentava deixar para escanteio os candidatos, mas é sempre o mesmo questionamento: “Negá-los visibilidade ou tentar desmascará-los?”
Nas redes sociais, os espectadores foram levados à ira com o despreparo da mídia ao lidar com o partido, na época vendendo seu peixe como centro-direita. Depois da saída da ex-chefe Frauke Petry, o corredor ligado à cena dos neonazistas ganhou grande espaço, como portões de animais selvagens que viviam encarcerados e, de repente, vislumbram a liberdade. O político de maior visibilidade desse fluxo se chama Björn Höcke. O chefão da AfD no parlamento da Turíngia faz parte do movimento “Novos Direitistas”, que tem o plano de juntar forças nacionalistas de extrema-direita para a hegemonização étnica da Alemanha e de toda a Europa.
Depois da radicalização da AfD, Höcke foi ampliando seus tentáculos dentro do partido, com o vento favorável gozando do status de protegido do porta-voz, Alexander Gauland. Essa dupla diabólica não faz segredo nenhum sobre sua obsessão e crença de que o próximo governo federal não será formado sem seu partido. Alexander Gauland é frequentemente chamado para programas de cunho político. Sua aparência de um avô sábio e tranquilão desmorona quando ele inicia o discurso de ódio com seus temas preferidos: os refugiados e a necessidade de fechar fronteiras da Alemanha. Além disso, a questão climática ele vê como algo “exagerado”.
A imprensa alemã, especialmente nos programas de TV, ainda não percebe que a AfD já saiu do palanque e, há muito, trouxe de volta o discurso a bares e cafés em rodas abertas de conversas também para pessoas antes engessadas pelo cinto apertado do politicamente correto. Provavelmente depois da crise dos refugiados, em 2015, quando Merkel abriu os portões para o que ela, até hoje, justifica como um “ato de humanidade”. Aproveitando o adubo político, o partido iniciou uma propaganda sem precedentes na sistemática quebra de tabus linguísticos.
Höcke exibe inúmeras similaridades com Goebbels. Ambos têm olhar frio, são obcecados pelo poder e, quando a cobra começa a fumar, vem o chororô, a DR. A última do chefe da bancada na região da Turíngia (leste do país) aconteceu na quarta-feira, 11 de setembro. Exatamente quando confrontado pelo redator durante a gravação para o programa Berlin direkt, ele não gostou nem das perguntas nem da insistência e excelente preparo do redator e, como tantas vezes antes em momentos similares, a máscara caiu.
A entrevista foi veiculada pela primeira vez no Berlin direkt, da rede aberta ZDF, às 19h15 (prime time) do dia 15. Em nota divulgada na manhã de segunda-feira, dia 16, a emissora assegurou que, no requerimento de entrevista enviado à assessoria de imprensa do político, a pauta mencionada teria sido “a atual situação política do país”. Höcke, por sua vez, nutria a expectativa em fazer campanha para as eleições regionais, a serem realizadas em 27 de outubro próximo.
Durante quase dez minutos, o redator questionou o político – que até 2014 foi professor de história e, desde então, se encontra em licença – sobre frases de seu livro Nunca o mesmo rio duas vezes (em tradução livre), indagando se não seriam adaptações ou até mesmo citações do vocabulário do período do nacional-socialismo, mais especificamente do livro de Adolf Hitler Mein Kampf (Minha Luta), enquanto a câmera mostrava o entrevistado, cada vez mais irritado e exibindo homérica falta de controle de sua emocionalidade. Mesmo sendo o superministro e um dos políticos mais influentes do nacional-socialismo, em seu diário, mencionado no livro Berlin 1936, do autor Oliver Hilmes (editora Siedler), Goebbels reclamava da cineasta preferida de Hitler, Leni Riefenstahl, a quem rotulava de “uma mulher histérica”, que agia livremente sem estar subordinada a ele.
Nenhuma coincidência
Höcke não esconde suas ambições de voos muito altos, como ficou claro no final da entrevista.
“Senhor Höcke, eu quero voltar a atenção para o seu vocabulário e como o senhor percebe este país. O senhor reclama de ser mal entendido”. O redator mostra no tablet, a dois membros do partido AfD, frases de Höcke e indaga se uma das delas seria do livro Minha Luta, de Hitler, ou do próprio político da AfD. Todos os indagados saíram pela tangente e, entre risos e frases pueris, para amenizar o constrangimento, declararam: “Eu não posso dizer, porque não li Minha Luta”. Essa frase os possibilitava ficar em cima do muro e não tomar partido ou por um ou outro.
Visivelmente contrariado com a “ousadia”, perguntado se o fato de ter sido professor de história não teria uma relação natural com a linguagem do período nacional-socialista, Höcke engata seu tradicional devaneio retórico: “Eu não acho que há um catálogo para a linguagem nacional-socialista. Veja nos setores da ciência, por exemplo. Nela, é praxe usar a expressão ‘desnaturada’”, alega.
A expressão “arte desnaturada” (Entartete Kunst) foi o rótulo diabólico que Hitler colou em todos os setores das artes e da literatura que não estavam de acordo com o regime.
Höcke prossegue com corriqueira alfinetada à imprensa, insinuando que esta esconderia o uso desse vocabulário, por exemplo, na ciência, “retirando-o do uso diário movida pelo establishment político-midiático e usando-o como palavra de ordem para enquadrar políticos, e isto não é certo”. E acrescentou: “Existe neste país uma tendência de estreitar cada vez mais os corredores linguísticos e de opiniões. Isso não faz bem à nossa democracia”.
Também nessa frase fica claro o grau de devaneio dos políticos de extrema-direita. Höcke está convencido de que é um defensor da democracia e certo de que um dia será “o chanceler do Reich”, como ironizou o programa de sátira política heuteshow, veiculado às sextas-feiras no final da noite, também na emissora aberta ZDF.
Depois de dez minutos de decorrência da entrevista, que Höcke classifica como “interrogatório”, seu assessor de imprensa, o jornalista Günther Lachmann, ex-funcionário do jornal Die Welt, interrompe a conversa no exato momento em que em o redator expressa sua linha temática: “Agora eu gostaria de falar sobre a sua percepção da democracia”. Com a voz em off, Lachmann alega que o tema da entrevista (uso do vocabulário do período do nacional-socialismo) teria deixado o entrevistado “emocionalmente balançado”, defendeu a tese de que “emoções como essas não devem ser veiculadas na televisão” e pleiteou o reiniciar da entrevista.
O redator logo reconheceu o intuito de exercer censura e sinalizou que não aceitaria a sugestão de iniciar de novo. Prontamente, Höcke começa com sua lamentação, declarando estar (mentalmente) cansado por ter vindo de “uma audiência de cinco horas”.
Aos 10:28 minutos, inicia o bate-boca entre o entrevistado, o assessor de imprensa e o redator. “O senhor já fez esse tipo de entrevista com outros colegas?”, pergunta Höcke, sentindo-se vilipendiado e ensaiando seu papel vitimista. Alguns segundos mais à frente, depois de morder, ele assopra: “Isso não é um jeito profissional. Claro que estou disposto a responder perguntas desagradáveis, mas não dessa forma”. Logo na sequência, partindo para o contra-ataque, ele alfineta: “O senhor é de uma TV aberta para a qual chovem críticas, o senhor vê que existe grande erosão nesse país”, declara, como se fosse o analista midiático mais temido da Alemanha.
Aos 12:48 minutos, assim que o redator dá a entender que a entrevista será interrompida e, para Höcke, cai a ficha de que essa edição, a primeira, a espontânea, será veiculada, com olhar de poucos amigos, ele ameaça: “Isso terá consequências, consequências graves entre a relação de confiança entre políticos e jornalistas”. O redator justifica a negação em reiniciar a entrevista com o “sensível setor da liberdade de imprensa”. Enquanto seu assessor e o redator discutem sobre o que foi e não foi anteriormente acertado, a câmera se mantém focada em Höcke, tomando vários copos de água enquanto as duas outras vozes, em off, completam o quadro bizarro.
Lachmann insiste na regravação e repete, várias vezes, sobre o “caráter über-emocional” que teria ganhado a entrevista, intuindo que isso seria contraprodutivo, o que não deixa de ser irônico, já que nenhum político tem suas emoções tão fora de controle como a face mais podre da AfD: Höcke.
Aos 16:13 min, o político dá uma sugestão de como a ordem das perguntas deveria ter sido feita. Sua preferência seria, primeiramente, por temas da campanha eleitoral, mas “começar logo com esse tema requentado, eu não aguento mais isso”, criticou.
Gran finale/Tudo no ventilador
Ao questionar a continuidade ou interrupção da entrevista no formato iniciado, em tom de ameaça, Höcke avisa: “Encerramos a entrevista, não sabemos o dia de amanhã, mas o que é certo é que não haverá mais entrevista minha com o senhor”. “Isso é uma ameaça?”. “Não”, responde. Logo na sequência, exibe um sorriso enquanto segue fiel ao ritual retórico dos extremistas do morde e assopra. “É só uma declaração, porque eu sou um ser humano”. A mensagem passada pela voz e a outra pela fisionomia não poderiam ser mais dicotômicas.
“O que poderá acontecer?”, indaga o redator, não se deixando intimidar e, de quebra, arrancando um semblante de surpresa do político, que, agora sim, está frente a um interrogatório: “Talvez eu venha a me tornar uma personalidade muito importante neste país. É possível…”.
Transparência
A emissora ZDF veiculou a entrevista na íntegra, assim como disponibilizou todo o script no site e em seu canal no YouTube.
Teoria da conspiração e desinformação ideológica são críticas que extremistas e antidemocratas fazem à imprensa. Só muda o estilo. Enquanto o presidente Bolsonaro já tem como praxe deixar jornalistas falando sozinhos depois de levantar o dedo polegar, disfarçando alguma pergunta “idiota” e lhes dando as costas, o outro extremista de direita com características do “corredor neonazista” ameaça que o ocorrido terá “consequências”.
Frank Überall, diretor da Associação de Jornalistas Alemães (DJV, na sigla), declarou: “Björn Höcke abriu mais um capítulo sombrio concernente ao lidar problemático da AfD com a liberdade de imprensa como um todo, com o jornalismo crítico e especialmente com jornalistas.”
A reação um pouco tardia da imprensa alemã, na terça-feira (17), ocupou as manchetes dos principais jornais:
O berlinense esquerdista liberal Der Tagesspiegel atesta: “O relacionamento perturbado da AfD com a imprensa“.
“Björn Höcke interrompe a entrevista, se faz de vítima e ameaça jornalista”
O redator-chefe da emissora ZDF, Peter Frey, ratifica a legitimidade da entrevista e questiona um posicionamento da diretoria do partido.
A revista centrista Focus titula: “Uma entrevista que virou uma celeuma mostra uma foto terrível” e ainda numera três erros por parte da emissora ZDF: “Höcke interrompe a entrevista e faz graves ameaças“.
No jornal liberal de esquerda Die Zeit: “Björn Höcke se faz maior do que é“.
O liberal de esquerda Spiegel titula: “Höcke interrompe entrevista com a ZDF“.
O centrista Die Welt também segue na manchete seca sobre a interrupção da entrevista.
***
Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.