“Eu enfrentava os batalhões
Os alemães e seus canhões”
João e Maria (Chico Buarque e Sivuca)
Ao longo da história, em períodos de democracia, especialmente depois da fundação do Estado alemão, em 1949, o jornalismo da Alemanha brilhou pela meticulosidade nas pesquisas (isso muito antes das fake news) e vem exercendo com maestria – e pequenos acidentes de percurso – o seu papel de quarto poder do Estado. Ele já derrubou inúmeros governos, já desmascarou políticos de colarinho branco com grandes ambições em direção à chancelaria federal, levou deputados que eram carros-chefe da classe política ao ostracismo e fez despencar Franz Beckenbauer, que parecia intangível em sua aura de ídolo, depois do furo sobre a compra de votos para sediar a Copa do Mundo de 2006, na Alemanha. Beckenbauer era o presidente do comitê de organização.
O exercício do jornalismo vaza notícias, provoca terremotos, sempre destemido de represálias e muito menos de corte financeiro que possam ameaçar sua existência, algo sempre presente em governos antidemocráticos e absolutistas.
O partido Alternativa para a Alemanha (AfD, na sigla), com claras linhas fascistas, retirou dos baús da história a expressão Lügenpresse (imprensa mentirosa). A expressão, surgida na metade do século XIX nos países de língua alemã, encontrou popularidade no âmbito da política propagandista da Primeira Guerra Mundial, da perspectiva da Áustria-Hungria e Alemanha frente aos países adversários. No contexto da Segunda Guerra Mundial, com a imprensa alemã já neutralizada, o termo servia para descrever e desacreditar os inimigos políticos. Na Alemanha do século XXI, são as emissoras públicas o desagrado, a Lügenpresse dos fascistas de plantão, que, desde 2017, estão representados na Câmara Baixa, o Reichstag, e são a terceira bancada mais representativa do parlamento.
A imprensa alemã contemporânea, mesmo sem sofrer a avalanche de países desgovernados por déspotas, também encara desafios dos novos tempos em que a notícia pode ser veiculada por qualquer um e se mostra por vezes indecisa, por vezes relutante em ser coerente e imparcial para lidar com claras tendências fascistas e neonazistas, especialmente exacerbadas nas regiões da Turíngia, Saxônia e Brandemburgo (leste do país). Os números das últimas eleições em âmbito federal e regional mostram a gravidade de deslocamento do espectro político-partidário no país.
Über-crítico
Quando se trata de corrupção, manipulação de dados ou mesmo crimes do colarinho branco, a imprensa alemã é implacável. Porém, quando a pauta consiste no questionamento do país hoje, dos alemães e seus canhões, com necessidade de olhar para o próprio umbigo, a esmagadora maioria dos veículos (inclusive os que gozam de excelente reputação e brilham pela seriedade) se deixa seduzir pela dialética da lavação de roupa com o resultante discurso polêmico enrustido como um artigo sério.
O exemplo mais recente do exercício de dois pesos e duas medidas foi a matéria veiculada no jornal inglês The Guardian, em 21 de janeiro, na qual o artista e ativista chinês Ai Weiwei faz um acerto de contas sobre os cinco anos que viveu em Berlim. E, como seu boletim exibiu notas péssimas, a imprensa alemã despencou num formato pouco digno ao abordar a pauta.
Fetiche pela subserviência
Provavelmente não “somente” os reis da Prússia deixaram aos berlinenses difícil e pesada herança de valores questionáveis e obsoletos. De acordo com Weiwei, “a Alemanha ainda é um país nazista e um péssimo lugar para estrangeiros”. E ainda afirmou que “essa repulsa está profundamente arraigada na sociedade”.
A incompatibilidade de Ai Weiwei com Berlim já havia sido expressada em agosto de 2019 em entrevista ao jornal Die Welt (O Mundo), quando ele avisou sobre seu debandar de Berlim: “Porque eu deixo Berlim e a Alemanha: um acerto de contas“, de autoria de Hans-Georg Rodek.
Hoje residente em Cambridge, na Inglaterra, ele relata seus perrengues na capital alemã, fala sobre o caráter rústico desse povo no trâmite diário e fornece o exemplo dos motoristas de táxi como vitrine e termômetro da estressante urbanidade berlinense. Esse grupo só perde para os motoristas de ônibus, incontestáveis campeões da hostilidade.
A foto do artista com a chefe da bancada do partido Alternativa para a Alemanha foi solo fértil para usuários das redes, questionando o paradoxo. Por um lado, ele é defensor de refugiados e sai pelo mundo para dar-lhes um rosto. Por outro, deixa-se fotografar com uma hard liner do partido mais hostil e racista da Alemanha.
Cuspir no prato
Há quem ache que o ativista está cuspindo no prato que comeu, já que a excelente conexão da chanceler Merkel com os poderosos da China possibilitou a Ai Weiwei sair da prisão domiciliar em seu país e emigrar para Berlim, onde atuou como professor convidado na Academia das Artes e onde ainda mantém seu ateliê no bairro de Prenzlauer Berg, leste da cidade.
As declarações do artista, mesmo sendo tachadas de polêmicas pela imprensa alemã, ratificam resquícios do nazismo do qual essa cidade foi o centro logístico, na rua Wilhelmstraße. As feridas e mazelas do militarismo do exército da Prússia e do nazismo são fraturas mais ou menos expostas pelas esquinas da cidade. Por que então usar da desonestidade em forma de surpresa ou repúdio para declarações que qualquer estrangeiro que habita Berlim poderá confirmar?
O modo rude em situações do dia a dia, até mesmo no setor da saúde, como em consultórios médicos, por exemplo, extrapola os nervos de quem aqui reside. Andar de bicicleta fora da faixa dos ciclistas pode dar briga de até chamar a polícia; a hierarquia perante os médicos, pseudo “deuses de jaleco branco”, ainda exprime uma credibilidade-fake; motoristas de ônibus são capazes, sem pestanejar e até mesmo exibindo uma aura de satisfação, de fechar a porta enquanto uma idosa vem correndo para tentar alcançá-lo. Essas cenas fazem parte da dura realidade berlinense. A escola de jardim da infância de Prenzlauer Berg, em que as crianças são proibidas de levar merenda que contenha açúcar, escreveu uma carta aos pais reclamando que um garoto levou biscoitos doces e ainda dividiu com os amigos – outra cena que se junta a muitas histórias de quem vive na capital.
Weiwei relata na reportagem ao The Guardian que seu filho foi atacado por um dono de loja e declarou que não quer vê-lo crescer em “ambiente hostil”.
O jornal HNA, da cidade de Kassel (vizinha de Frankfurt), de forma pouco diferenciada, escreve: “Já não é a primeira vez que Ai Weiwei xinga a Alemanha”.
Com toda a eficiência para vazar escândalos e desvendar falcatruas, a imprensa alemã ainda se mostra incapaz de autocrítica. Ainda mais se a proveniência for de um estrangeiro e vier de um elemento que gozou da benevolência de um asilo político no país entre 2015 e 2019.
Muito mais do que sacolejar a zona de conforto dos alemães e instigar para tirar os conflitos de baixo do tapete, as declarações de Ai Weiwei, além de realistas, arranham a imagem da cidade, a terceira mais visitada da Europa, que se vende como cosmopolita, aberta a tudo o que vem de fora – o que é uma inverdade.
Apesar do selo de capital da República, tolerante com as diferenças, a cidade tem um outro lado que a imprensa alemã e muito menos leitores alemães não querem ver, e que está relacionado a persistentes mazelas do passado: o absolutismo na postura de que a sua forma de ver o mundo e lidar com os trâmites diários (seja na fila do supermercado, na sala de espera do consultório médico ou na forma de falar com as atendentes atrás do balcão) é a melhor e a única legítima, entre tantas outras. As reminiscências do passado sombrio se expressam no comportamento de diferentes gerações.
“A ideologia do fascismo prescreve que a sua ideologia é mais legítima do que outras, além de posicioná-la no patamar do incontestável, partindo para o desacreditar de outras formas. Isso é um herança diabólica e ela teima em se fazer presente no dia dia dos alemães”, atestou.
Defuntos no porão
Junte isso ao permanente olhar de censura para tudo ao redor, como, por exemplo, se o vizinho coloca a máquina de lavar para funcionar no período da noite ou se alguém do edifício abre a janela da escada devido a um calor das Arábias em atitude de empoderamento. Eu já perdi as contas das vezes em que, ao me posicionar fora dos regentes padrões de subserviência em consultórios de dentista, por querer informações exatas sobre o tratamento e o custo do mesmo, fui convidada a “procurar outro consultório”. Berlim detém o apelido de ser “o deserto da prestação de serviços”. No Japão, pode-se ligar para o correio ou expressar no site da empresa a que horas e minutos exatos o cliente quer receber sua encomenda em casa. Em Berlim, o entregador da empresa de logística DHL ou deixa na porta do apartamento para qualquer um se apropriar do pacote ou, para evitar subir as escadas do prédio, afirma que o cliente “não foi encontrado”.
Weiwei foi expulso de táxis em Berlim por três vezes. Os três motivos tangiam a sensibilidade e os limites do motorista, e não os do passageiro. Uma das vezes foi ao falar com sua mãe no celular. A conversa em chinês incomodou o motorista do táxi de tal forma que Weiwei foi expulso do veículo. Num episódio como esse, não se constata “somente” a postura hostil, mas a rejeição pelo outro que “ousa” exercer diferentes parâmetros de comportamento. Nesse quesito, os alemães são implacáveis. Não há negociação e zero tolerância.
O percentual de censura e repressão não combina com a imagem de Berlim como cidade anything goes – que, aliás, é a maior mentira, mas que persiste por motivação marqueteira. Ademais: as mazelas e idiossincrasias berlinenses não escolhem suas vítimas sob o prisma de visitante temporário ou residente.
O portal Spiegel Online foi o mais neutro possível ao reproduzir a notícia sobre a matéria no The Guardian. “Eles não gostam de estrangeiros lá”. O SO veiculou vários itens da entrevista original, sem se deixar seduzir pelo orgulho ferido, mas ficou longe de oferecer uma plataforma para debate e reflexão.
Os que sabiam e escondiam debaixo do tapete e os que ficaram surpresos com as experiências de Weiwei em Berlim devem se sentir agradecidos com um texto claro e sem cosméticos. Agora era fatal que o faz de conta terminasse assim.
Em vez de aproveitar o discurso – que, sim, goza de um bom percentual de polêmica (vindo de um artista que tem seu principal foco temático em deslocamentos, exílio e subserviência às hierarquias), mas também grande percentual de verdade – para olhar mais para o próprio umbigo, a imprensa alemã preferiu ou o caminho da neutralidade ou das polêmicas aliadas à ausência de um sensato meio-termo, desperdiçando oportunidade de refletir abertamente sobre si e sobre a cidade em que vivemos. Nada mais saudável, urgente e imprescindível.
Links (em alemão):
– https://www.merkur.de/politik/ai-weiwei-exil-deutschland-deutsche-fremdenfeindlichkeit-unhoeflich-interview-berlin-zr-13484346.html
-https://www.bz-berlin.de/berlin/ai-weiwei-rechnet-mit-deutschland-ab-nazismus-ist-noch-immer-da
-https://www.faz.net/aktuell/feuilleton/debatten/chinesischer-kuenstler-ai-weiwei-rechnet-mit-deutschland-ab-16325309.html
-https://www.berliner-zeitung.de/politik-gesellschaft/intolerant-bigott-und-autoritaer-ai-weiwei-rechnet-mit-deutschland-ab-li.5391
-https://www1.wdr.de/kultur/kulturnachrichten/ai-wewei-deutschland-guardian-rassismus-nationalsozialismus-100.html
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Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.