Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo no Uruguai: entrevista com Pedro Russi Duarte

(Foto: Arquivo Pessoal)

Entre 2005 e 2019, os temas relevantes no Uruguai foram a construção do relato da terrível insegurança, da calamitosa educação. A partir de 2020, publicar na lógica da “receita de bolo”. 

Pedro Russi Duarte é um estudioso e professor de jornalismo formado em Ciências da Educação pela Universidade Católica do Uruguai. Pós-doutor em Filosofia pela Universidade de Navarra, na Espanha, possui também mestrado e doutorado em Comunicação pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), no Brasil. Atualmente, ele integra o quadro docente do Cenur-LN (Centro Universitário Regional Litoral Norte) da Universidade da República (UdelaR), no Uruguai.

Nascido em Paysandu, onde também reside e trabalha, Russi é membro do Sistema Nacional de Investigadores e da comissão diretiva da Associação de Investigadoras e Investigadores do Uruguai. Além disso, colabora com a pós-graduação em Comunicação da Universidade de Brasília (UnB) e é membro da diretoria do Centro Internacional de Semiótica e Comunicação (Ciseco).

Autor de livros como Meios de Comunicação na Migração: uruguaios no sul do Brasil (2010), Líderes de Opinião no Ambiente Midiático (com Lauro Maranhão Aires Neto, 2010) e Entrevozes Urbanas (com Renata Almendra, 2020) e organizador de obras como Processos Semióticos em Comunicação (2013), ele articula em suas pesquisas sobre Jornalismo, Discurso e Comunicação, áreas como Semiótica, Epistemologia e discussões sobre América Latina. É a partir da sua expertise sobre mídia que o pesquisador uruguaio fala sobre a imprensa em seu país. Saiba mais a seguir. 

Enio Moraes Júnior — Você tem uma importante experiência no ensino e na pesquisa em Jornalismo. É possível traçar um paralelo entre a imprensa do Brasil e do Uruguai?

Pedro Russi Duarte — Existe uma gama de formação que se elabora no pensamento curricular brasileiro que no Uruguai ainda está sendo pensada. Podemos mencionar os estudos de pós-graduação que atuam diretamente na construção da pesquisa sobre o tema. Há uma longa experiência no Brasil, sendo que no Uruguai ainda é muito incipiente, embora haja esforços em acelerar isso no âmbito da educação pública. Na educação privada, isso se resolve de maneira diferente pelas próprias características e objetivos institucionais e de mercado, que dão agilidade aos mecanismos correspondentes.

Ao considerar o momento atual Brasil / Uruguai, posso estabelecer também algumas semelhanças, especialmente no que diz respeito ao rumo que estão tomando os grandes meios de comunicação em cada país. Eles parecem responder a um roteiro geopolítico que homogeneiza onde encosta. Hoje, os meios de comunicação com poder econômico importante atuam como representantes da voz oficial, que se instala para garantir o monopólio e a concentração. No Uruguai, isso acontece acelerada e explicitamente a partir de 2020. E a formação de jornalistas tem que contemplar estes cenários, porque é neles que atuarão profissionalmente. Eis o grande desafio na formação acadêmica, que não pode deixar de ser humanista, justa, ética e política (considerando a polis-e-paideia).

Se perguntarmos sobre os meios alternativos, no Brasil, eles têm um percurso de longa data, já no Uruguai são mais recentes. Refiro-me a que esses meios tenham um reconhecimento como tais, tanto no nível local como nacional. Tecnicamente, o Uruguai tem uma malha de rede digital (fibra óptica) que abarca o país todo, o que possibilitou a várias rádios comunitárias um alcance geograficamente maior: um “detalhe” substancial para pensar e projetar estratégias comunicacionais para além da hegemonia dos grandes meios.

Na prática, estamos observando novas intervenções midiáticas que geram resistência do poder governamental e empresarial. O governo uruguaio está “propondo” uma chamada Lei de Meios, profundamente agressiva, punitivista e oligopolista. Esse projeto foi posto em cena em 2021, ficou em stand by e em 2022 parece iniciar-se a empreitada política. Vale lembrar que o Uruguai elaborou uma lei de meios que demorou muitos anos para ser promulgada, o que aconteceu em 2019, e agora o atual governo propõe outra lei.

EMJ — Alto IDH, segurança e estabilidade política. Parece que o Uruguai é um país modelo na América Latina. É isso mesmo? Quais são os temas sociais mais relevantes no jornalismo uruguaio?

PRD — Isso me faz lembrar o grande e prejudicial mito e imaginário de ser o Uruguai a “Suíça da América”. Para quem não conhece essa denominação (eu me dedico a isso em uma parte do livro sobre migrações), esse mito ancora-se na incidência dos discursos midiáticos da metade do século XX, separando e higienizando o Uruguai da sua história relacionada aos povos originários, como os Charruas e os Guaranis. Um dos passos para sair disso é não desconhecer o significativo incremento da brecha entre os ricos e os mais pobres no Uruguai, especialmente nos últimos anos. É falar de um distanciamento de classes cada vez mais acentuada, seguindo, a contragosto do mito, o modelo de dependência e elitização que se instala e fortalece pela geopolítica na América Latina. 

Seguir modelos é subtrair as diferenças e a diversidade; uma visão holística da história permitiria compreender melhor todos nossos processos e particularidades vitais. Isso é um problema para o Uruguai: acreditar ser modelo de alguma coisa, em vez de entender-se na dinâmica de um continente cheio de diversidade, na qual também se encontra. A rigor, a nossa miséria parece ser exemplar, mais digna e revestida de melhor cultura. Mas estamos na mesma dinâmica em que os pobres são mais pobres e os ricos, mais ricos.

Com relação aos temas do jornalismo, vou destacar algo que me preocupa bastante nestes tempos no Uruguai. Vamos considerar, a modo de exercício analítico, os meios de comunicação denominados alternativos, com o objetivo de pôr na cena discursiva a informação que atualmente os grandes meios de comunicação estão solapando ou disfarçando. Esses meios, alguns deles comunitários, fazem isso à revelia da hegemonia midiática “jurídica” que se impõe sobre eles. Há rádios, jornais impressos ou programas em TV e internet de mediano porte que estão fazendo uma oposição importante ao atual status quo da construção da notícia.

Por outro lado, desde 2020, os grandes meios do Uruguai vivenciam uma situação que pode ser exemplificada com uma metáfora muito conhecida no Brasil: a notícia “receita de bolo”. Eles tornaram-se obscenamente oficialistas. É fácil constatar o tempo dedicado a falar de insegurança quando estava o governo anterior (de esquerda, tendo à frente Tabaré Vázquez) e o tempo que hoje (de direita, com Luis Lacalle Pou) estão dedicando para falar do mesmo assunto. A diferença é de 3 a 1, respectivamente, sem mencionar as formas narrativas dessas notícias em cada um dos momentos. Entre 2005 e 2019, os temas relevantes no Uruguai foram a construção do relato da terrível insegurança, da calamitosa educação. A partir de 2020, publicar na lógica da “receita de bolo”.

Com relação aos jornalistas, há perseguição e ameaças à liberdade de expressão. Por isso, faço o convite de entrar na página de Cainfo e conferir as denúncias de jornalistas, destacando declarações ofensivas recebidas do poder Legislativo e Executivo e ameaças relevantes à liberdade de expressão, que aumentaram vertiginosamente entre 2019 e 2021.

EMJ — De que forma funciona o jornalismo regional e local no país? Quais os assuntos mais recorrentes demandados pelas comunidades?

PRD — Os meios alternativos ou comunitários têm uma ação importante que deve ser reconhecida e destacada, considerando também a formação dos profissionais. No caso da UdelaR, podemos falar da expansão da universidade para o interior do país (antes muito restrita a Montevidéu), um projeto que se fortaleceu no entorno de 2012-2014. No caso específico da formação em comunicação, ainda não aconteceu de ter o curso de jornalismo completo no interior, mas isso não sucede somente com comunicação-jornalismo, está no histórico de centralismo da formação universitária na capital do país.

No interior, esta ainda continua sendo uma profissão exercida por amadores. Falo amador no melhor sentido da definição, não pejorativo, muito pelo contrário! As pessoas que trabalham nos diversos meios de comunicação procuram se formar e se atualizar, mas muitos não tiveram a oportunidade de estudar ou complementar graduação em jornalismo, por exemplo. Isso leva ao exercício da profissão exclusivamente fundamentada na prática, o que é legítimo e reconhecido no Uruguai. Porém, não podemos ficar somente nisso.

O ideal seria que essas pessoas pudessem enriquecer-se com a formação acadêmica, pensar nas sinergias que isso pode trazer, como o fortalecimento cultural, além da boa vontade de fazer as coisas bem-feitas. O interior tem essa realidade, a oportunidade da maioria dos que ficaram e não puderam estudar na capital, na faculdade, se restringe à formação prática ou cursos de curta-duração, que esporadicamente alguma instituição pode oferecer.

No Uruguai, o centralismo se repete no acesso às notícias, na forma como o interior é representado na capital e trasladado ao âmbito do valor-notícia e nas formas de fazer saber sobre esse “outro” país. A título de ilustração, a TV por assinatura permitiu o acesso à produção de conteúdos desenvolvidos exclusivamente em Montevidéu. Assim, há matérias e reportagens geradas por jornalistas do interior que se transmitem nos jornais da capital. Montevidéu se nutre do interior, porém, quem se nutre de Montevidéu é o interior, embora no interior também se produza material que é consumido internamente.

EMJ — As mídias sociais mudaram a forma de produção de notícias em todo o mundo. Quais são os aspectos positivos e negativos dessa mudança no Uruguai?

PRD — Haveria alguma mídia que não fosse social? Fico sempre com essa questão dando voltas na minha mente. Posso destacar um ponto crítico, que é a produção de notícias e o lugar delas no que se entende por informação. No sentido geral, embora haja exceções, podemos observar uma reprodução das agências internacionais. As análises que há algum tempo eram construídas a partir da idiossincrasia uruguaia ficaram fora do jogo porque apareceram lógicas que se estabelecem como as que devem ser seguidas. Aqui voltamos ao tema dos modelos: uma formatação de construção das notícias que homogeneizou e higienizou o identitário. Isso se observa no tipo de texto, de emissão televisiva das notícias, nos corpos que se apresentam e dançam diante das câmeras, seguindo um roteiro pensado em outros meridianos e paralelos.

Na chamada guerra Ucrânia / Rússia, é muito difícil encontrar outro tipo de elaboração da notícia que não seja a dualista e dicotômica do bem e do mal. As coisas aconteceram de tal forma que muitas das notícias falsas que circularam no mundo sobre essa denominada guerra foram retransmitidas como verdadeiras, sem uma ação crítica ou analítica do que isso significa na comunicação, especialmente no jornalismo. Estamos caindo ou já estamos em um jogo onde a frase seria “o show deve continuar, custe o que custar”, mesmo sendo às custas da própria verdade (não desconhecendo o que a verdade significa no âmbito das notícias).

EMJ — Migrações, diásporas e redes de familiaridade são temas que aparecem nos seus estudos. Como essas questões são tratadas, hoje, no jornalismo latino-americano? 

PRD — É um tema que me interessa porque vejo que há mudanças, mas ainda falta muito para que exista uma construção da notícia humana e humanizadora. Penso que isso pode estar relacionado ao que falei na pergunta anterior: quando temos higienização e homogeneização, inevitavelmente temos a perda da humanidade do outro. O que vale é a notícia como show, não o que isso constrói como saber sobre o que acontece com o outro.

Voltando ao tema da guerra atual, porque é algo que está no espiral do silêncio da sociedade, embora se apresentem as filas das pessoas que estavam fugindo do conflito, o tratamento é muito, mas muito diferente dos migrantes que saem da África para o continente europeu ou dos refugiados anteriores. Uma das coisas que me espantou foi ler e escutar que eram refugiados diferentes porque eram brancos e de olhos claros. Isso, falado pelos próprios jornalistas e repetido no contexto latino-americano, naquelas reproduções das agências de notícias que mencionei antes. Essa é a relação com os pobres dos países, do continente e do mundo. E se reproduz intensamente esse tratamento.

Por esse motivo, os meios alternativos, comunitários e de resistência ao status quo são tão combatidos, diretamente ou na máscara da law fair (guerra jurídica). Podemos lembrar alguns casos emblemáticos, o de Julian Assange, o do The Intercept. Mas aqui estão também os casos que não entram na cena midiática mundial e ficam nos bastidores, nas grades das guerras jurídicas ou em outras que se manifestam nas ameaças diretas, sem mediação legal. Em síntese, não vejo nesta parte do continente um tratamento humano do tema porque também não se trabalha, ou se trabalha muito pouco esses aspectos nos espaços de formação acadêmica.

Lembro daquela criança síria, Alan Kurdi, de 3 anos de idade. Um menino migrante, branco, de classe média, que morreu afogado quando, com a sua família, tentava chegar na Grécia, mas o corpo ficou na praia de Bodrum, na Turquia. Essa imagem chocou e tornou-se um ícone porque teve um tratamento informativo bastante exaustivo, com reportagens posteriores, desdobramentos noticiosos, imagens cinematográficas bem elaboradas etc. Essas características me incomodaram pelo seguinte: esse tratamento alongado no tempo e na narrativa foi porque era migrante ou porque era um menino de classe média, branco, estava bem-vestido e, além disso, conseguiram resgatar uma história-relato familiar para construir a notícia?

Todas as vidas importam, mais ainda nessas condições, sendo crianças. Mas nem todas são tratadas no âmbito das notícias da mesma forma. Um dos operadores de sentido, nesse caso, foi de que certos corpos devem morrer e outros não. E nisso, sim, tem muito a ver o tipo de construção da notícia que se faz e do relato (discurso) que se constrói. E se isso é levado para o âmbito da América Latina profunda, com relação aos povos originários, vamos ter o mesmo modus operandi no tratamento da notícia. Ainda vivemos “la maldición de malinche”, recomendo procurar informação sobre isso, algo que Galeano resgata e nos apresenta tão intensamente na trilogia das Memoria del Fuego. Lembro também do texto Los Nadies, também de Galeano. Sugiro a leitura, porque nossas veias ainda estão abertas.

EMJ — De que maneira você avalia o engajamento social na formação de jornalistas no país hoje? O que você pode dizer sobre o futuro da nossa profissão no Uruguai?

PRD — Não pretendo falar do futuro da profissão, senão do que podemos fazer para que a profissão seja ressignificada. E isso acontece quando uma sociedade faz um chamado de atenção à construção simplória das notícias, quando se confunde informação com notícia, quando o dataismo (o domínio dos dados) toma conta da notícia e se fecha em si mesmo, como se per se fosse importante. Um bom jornalismo se constrói em mão dupla, tanto nas gramáticas da produção, como nas gramáticas da recepção (para lembrar Verón). Isto é: jornalismo é interseção que se desenha no “entre as gramáticas”. Dessa maneira, podemos pensar na formação dialógica da comunicação e o jornalismo é o que essa relação estabelece. Do contrário, a profissão deixa de ser comunicacional para se tornar utilitarista, algo que, de maneira ampla, está acontecendo.

Um movimento que poderia ser feito, já nos primeiros anos da escola, é realizar análises críticas dos meios de comunicação, de todos os meios, dispositivos e plataformas. Fazer constantemente leituras críticas, entender que a análise não somente nos torna receptoras e receptores atentos, senão que também prepara e permite um jornalismo mais intenso, mais profundo, mais autônomo. Criar processos metódicos e técnicas de análise, sem seguir um determinado formato ou modelo absoluto, para arriscar formas e dinâmicas distintas de ver / ouvir / ler o jornalismo. Estou pensando no exercício de escutar ou ler notícias jornalísticas e propor alternativas de análise, desconstruir as notícias e também construir outras propostas informativas. Quando temos bons leitores, temos pessoas interessadas em dialogar. E, portanto, quem constrói a notícia terá isso como operador de sentido no seu trabalho.

O futuro da profissão está na educação crítica já nos primeiros dias da escola, e o mesmo defendo para o trabalho daquelas instituições dentro da chamada educação não-formal ou alternativa. O sentido está em fortalecer nossas formas de mirar, de escutar, de relacionar a notícia e de propor alternativas ao relato construído pelos jornalistas. Aliás, quantas vezes compartilhamos nos foros mais íntimos as impressões das formas como as notícias são construídas? Nada é natural, o jornalismo não nasce de forma mágica, é construído e, diretamente ou não, estamos afetados por ele.

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Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.

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 Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.