Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Lula em Berlim: “Nós perdemos o sentido da humanidade”

(Foto: Arquivo pessoal / Fátima Lacerda)

Depois de 580 dias preso, sem provas concretas e por um juiz obcecado por colocá-lo atrás das grades, a recente viagem do ex-presidente teve o claro objetivo de reabilitá-lo no cenário internacional e revigorar empoeiradas alianças.

A agenda escolhida para sublinhar esse intuito foi falar sobre a pobreza e sobre a desigualdade na distribuição de renda. Primeiro, em conversa com o Papa Francisco, Lula ressurgia no cenário midiático no Velho Continente. A clássica imprensa brasileira ignorou a pauta.

CBN usou das informações da BBC Brasil. A Folha enviou um repórter, mas Lula, hermeticamente blindado por seu fotógrafo pessoal, Ricardo Stuckert, não concedeu nenhuma entrevista a veículos da imprensa brasileira.

Lula e a imprensa formam o capítulo de uma longa novela. Certa vez, em monólogo nas dependências da Fundação Friedrich-Ebert, logo depois de estourar o escândalo envolvendo Rosemary Nóvoa de Noronha, ex-chefe de gabinete da Presidência em São Paulo, Lula saiu pelas portas dos fundos depois de almoçar com seus anfitriões e deixar a imprensa esperando por mais de duas horas, na ânsia de uma declaração.

Depois do encontro de grande impacto midiático com o Papa Francisco, Lula seguiu com a comitiva para Paris. Das mãos da prefeita Anne Hidalgo, recebeu o título de Cidadão Honorário, concedido a ele ainda na época em que estava preso. Depois de passar em Genebra, na Suíça, Lula chegou a Berlim no dia 7. No Dia Internacional da Mulher, postou uma foto na qual homenageava a filósofa e economista marxista polaco-alemã Rosa Luxemburgo.
Vestindo uma capa do sindicato IG Metall, ele se dirigiu às participantes do Encontro Nacional das Mulheres Sem Terra.

Lula foi a Berlim a convite do Sindicato dos Metalúrgicos (IG Metall) e da Fundação Friedrich-Ebert Stiftung, ligada ao partido social-democrata alemão (SPD, na sigla). Passando ao largo pela embaixada brasileira na capital, a agenda de Lula o levou à sede do SPD para conversa com o recém-empossado líder Norbert-Walter Borjans, figura de impacto midiático zero para o partido que, mesmo ainda fazendo parte da coalizão em âmbito federal, vem desmoronando com vertiginoso êxodo do eleitorado. Lula também conversou com o líder do partido esquerdista Die Linke, Bernd Riexinger. O desdobramento midiático da visita do ex-presidente na imprensa alemã foi mínimo.

A agenda de Lula, especialmente em Berlim, foi para dar um sinal de vida, um pequeno sinal de influência política e um afago para brasileiros radicados na cidade. O discurso de agradecimento foi uma das principais pilastras retóricas. Seu encontro com o ex-chefe dos Social-Democratas, Martin Schulz, que o visitou em Curitiba quando estava preso, é coerente com a linha de agradecimentos.

(Foto: Arquivo pessoal / Fátima Lacerda)

Os encontros políticos serviram para manter viva a ponte com aliados, mesmo que em âmbito protocolar, para constar. Os partidos Die Linke e SPD estão vivendo momentos dramáticos de debandada de eleitores, mas o carrossel político é imprevisível e amanhã pode ser outro dia.
Andando de um lado para o outro do palco, Lula fez seu agradecimento concreto:
“Aqueles que eram do PT, que não eram do PT, eu quero agradecer de coração o gesto de solidariedade com o Brasil, com o juiz (eu não vou dizer o que ele é). Certamente eu nunca vou parar de agradecer aquele povo ‘Bom dia, presidente Lula, boa tarde, presidente Lula’”.

Desafiando o coronavírus

O único evento público de Lula na capital foi num lugar no meio do nada e muito infeliz na escolha. De acordo com informações de um dos grupos organizadores, o PT teria entrado em contato muito em cima da hora. Por isso, só esse lugar, o Festsaal Kreuzberg, estaria livre. No site do local, nenhuma informação sobre o evento. De todas as partes, houve muito boa vontade, mas o improviso emperrou. Lá fora, uma fila imensa, num dia em que São Pedro decidiu jogar todo seu contingente de água em Berlim. Nas redes sociais, brasileiros reclamavam de compatriotas por terem furado as filas, argumento que foi pólvora para se discutir a postura de quem é de esquerda. Que a mesma pessoa que iniciou as reclamações mentiu ser da imprensa para angariar um dos lugares reservados em frente ao palco é só um detalhe.

Ao chegar ao local, Lula encontrou 600 pessoas entusiasmadas e ávidas pela retórica brilhante de um grande estadista e a possibilidade de um contra-discurso à insanidade que tomou conta do país.

O evento, exibido ao vivo no Facebook, contou com a valiosa presença do diretor nacional do MST, João Paulo Rodrigues, que acompanhou o ex-presidente pela Europa. “Desde o massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, que Alemanha e Berlim têm sido palco de denúncia contra o latifúndio no nosso país e sempre muito solidários na luta do nosso povo.”

Somente dois dias antes da Organização Mundial de Saúde classificar o coronavírus como pandemia, os simpatizantes do presidente Lula e alguns poucos jornalistas da Espanha e de veículos alemães – muitos deles alternativos, como Junge Welt (Mundo Novo) – enfrentaram o perigo para cobrir a pauta.

(Foto: Arquivo pessoal / Fátima Lacerda)

Em matéria veiculada no jornal berlinense Der Tagesspiegel em 11 de março, o título não faz jus ao conteúdo. “Estaria Lula se preparando para um duelo com Bolsonaro.”

O artigo divulga que Lula quer tirar Bolsonaro do poder e teria buscado apoio com o Secretário de Estado Niels Annen. Porém, em discurso de pouco mais de 50 minutos em Berlim, Lula falou sobre medidas implementadas durante o seu governo (2002-2010), sobre a luta contra a miséria, sobre o programa Cientistas Sem Fronteiras, do governo Dilma, mas também sobre as cartas de amor que recebeu da sua atual companheira – enquanto alguém do público gritou: “Poderosa!!”. A socióloga Rosângela da Silva ficou sentada o tempo todo no sofá, como um bem-vindo adereço que combina muito bem com a “volta de Lula”, revigorado, com o conhecimento mais amplo que angariou na prisão, onde, segundo ele, estudou e leu muito.

Ao contrário de todas as outras pessoas no palco, Rosângela foi a única a não ser apresentada em momento algum. Lula também falou da cadelinha apelidada de “Resistência”, que teria ficado o tempo todo de plantão em Curitiba e que agora seria o xodó do novo casal. O artigo veiculado no jornal berlinense interpreta o encontro com o Secretário de Estado como instrumento para duelar com Bolsonaro. A fatura não fecha. O governo da Alemanha tem sido conivente demais com o governo Bolsonaro, exceto durante as queimadas na Amazônia.
Quase todo o tempo de seu discurso, Lula optou pela retórica mais suave ao falar de Bolsonaro e ainda mais suave ao se referir ao juiz Sergio Moro, sem citar seu nome. Só foi mais incisivo ao insinuar a conexão “dos lá de cima” com as milícias.

Cartilha da democracia

“O povo tem que saber que a democracia vai exigir muita luta, muita conquista e, sobretudo, vai exigir que a gente trate as pessoas em igualdade de condições. A democracia é uma sociedade em movimento, para conquistar mais direitos para a sociedade.” Decerto que a visita de Lula a Berlim e seu contra-discurso foi um afago na alma de muitos brasileiros que ali se encontravam. Entretanto, o ex-presidente ficou devendo respostas urgentes no quesito autocrítica, mas, acima de tudo, um plano para articular a esquerda no Brasil. Nenhum sinal sobre como preparar o partido para o futuro, nenhum sinal de articulação para as eleições de 2020.

“Quem chega tarde demais é punido pela história”, disse Mikhail Gorbachev, ex-líder soviético, em mensagem direcionada aos chefes do então Politburo da Alemanha Oriental poucas semanas antes da derrubada do Muro de Berlim, criticando a teimosia em defender um sistema visivelmente falido. A visita de Lula, tirando os noves fora, terá tido aspectos protocolares, de retomada de alianças empoeiradas pelo tempo e pela distância, mas ficou devendo no principal: uma força-tarefa, uma perspectiva além da “ameaça” de ir para as ruas protestar contra o atual governo.

***

Fátima Lacerda é carioca, radicada em Berlim desde 1988 e testemunha ocular da queda do Muro de Berlim. Formada em Letras (RJ), tem curso básico de Ciências Políticas pela Universidade Livre de Berlim e diploma de Gestora Cultural e de Mídia da Universidade Hanns Eisler, Berlim. Atua como jornalista freelancer para a imprensa brasileira e como curadora de filmes.