Monday, 30 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Adeus ‘bom cidadão’, bem-vindo ‘cidadão comunicador’

(Imagem de Marius Berthelsen por Pixabay)

Você provavelmente ainda não se deu conta, mas as coisas estão começando a mudar intensa e rapidamente quando lidamos com a informação. Uma das novidades é a que muda a função das pessoas comuns no chamado espaço público da comunicação (1). Até agora, para alguém ser considerado um ‘bom cidadão’, comprometido com a democracia, era indispensável ser um indivíduo bem-informado. A informação era o principal referencial da atividade social, econômica e política. 

Mas desde a chegada da internet e das redes sociais as coisas começaram a mudar lenta e irreversivelmente. Não basta mais ter informação. O mais importante passou a ser a disseminação de dados, fatos, eventos e ideias capazes de ampliar o conhecimento das pessoas. A vida democrática passou a ser influenciada por um novo tipo de cidadão, o comunicador.

A mudança já pode ser vista no comportamento dos usuários de redes sociais, um universo que hoje reúne quase quatro bilhões de seres humanos em todo o planeta. Três bilhões só na rede Facebook. É neste ambiente digital que diariamente são publicados 2,5 quintilhões de dados (2) formatados em bytes, distribuídos em 41,6 milhões de postagens por minuto no WhatsApp; 306,4 bilhões de mensagens diárias de e-mail; o equivalente a 300 horas de vídeo são publicados por minutos no YouTube; e dois milhões de notícias diárias só nos maiores jornais do mundo.

Esta avassaladora quantidade de informação disponível na internet superou a capacidade dos jornalistas e da imprensa de contextualizar e conferir significado a toda esta massa de dados. Só nos Estados Unidos, o país com a imprensa mais avançada do mundo, 26% dos jornalistas perderam seus empregos entre 2008 e 2020. Aqui no Brasil, segundo a Federação Nacional de Jornalistas (3), quase 13 mil jornalistas com carteira assinada foram demitidos (21,3% do total). No mundo, acredita-se que cerca de 1/3 dos jornais e revistas impressos tenham deixado de circular desde o início do século. Segundo o pesquisador norte-americano Erik Peterson, é possível que entre 300 e 500 questões políticas deixaram de ser investigadas jornalisticamente devido ao desemprego de profissionais e ao fechamento de jornais e revistas.

A agonia do ‘bom cidadão’

Isto mostra como a indústria da imprensa tem cada vez mais dificuldades para abastecer a cidadania com a quantidade adequada de notícias e informações necessárias para a sobrevivência do ‘bom cidadão” convencional. Por outro lado, o público foi empoderado pela digitalização e pelas redes sociais na internet, tornando-se um protagonista cada vez mais proativo no conjunto da sociedade. A conclusão inevitável é que há necessidade de uma nova relação entre jornalismo e o público, uma possibilidade que, segundo pesquisadores como a também norte-americana Nikki Usher (4), acabará se materializando através do ‘cidadão comunicador’.

A nova relação entre jornalismo e o público reduz a participação de repórteres e editores na coleta e processamento de notícias de atualidade porque as pessoas comuns, donos de empresas, governantes e políticos usam cada vez mais as redes sociais e aplicativos para divulgar o que está acontecendo ou anunciar decisões que afetam a sociedade. Mas, em compensação, aumenta extraordinariamente a importância e a responsabilidade dos profissionais do jornalismo na investigação de questões complexas e no patrulhamento de governos, empresas e entidades públicas, missões que tradicionalmente foram afetadas por interesses comerciais de donos de empresas jornalísticas.

Para que serve o jornalismo hoje?

A ascensão do ‘cidadão comunicador’ não reduz a importância do jornalismo no âmbito da informação pública. Apenas torna necessária uma adequação das funções de repórteres (em texto, áudio e imagens), editores, comentaristas, ilustradores e programadores à nova lógica social, política e econômica da era digital. Funções novas como curadoria de notícias, para reduzir a desorientação informativa, e tutoria sobre uso da informação para combater fake news, a desinformação e o mau uso da inteligência artificial na internet. 

Tudo isto está acontecendo também por conta de alterações ainda pouco perceptíveis para o grande público na dinâmica da democracia. Se antes a informação era fundamental na incorporação dos cidadãos ao sistema democrático, agora a peça-chave passa a ser a comunicação. Na época da escassez e lentidão no suprimento de notícias, quem tinha informação tinha poder, o que reduzia drasticamente o número daqueles que podiam interferir em decisões cruciais para a sociedade. 

Hoje, na era da avalanche noticiosa, da informação em tempo real (ao vivo) e do processamento de volumes imensos de dados através da inteligência artificial, disseminar conhecimentos, experiências e realidades se tornou muito mais importante do que guardar informações. Esta é a principal razão pela qual os chamados influenciadores digitais ganharam tanta importância nas redes sociais. 

  1. Espaço público é um conceito geral para definir ambientes abertos físicos (praças por exemplo) e digitais (redes sociais) onde as pessoas podem interagir entre si.
  2. Um quintilhão é formado por 18 zeros.
  3. Fonte: https://fenaj.org.br/mercado-de-trabalho-formal-no-jornalismo-demite-mais-do-que-emprega-em-2023/ 
  4. Nikki Usher é autora do trabalho Post-Newspaper Democracy and the Rise of Communicative Citizenship: The Good Citizen as Good Communicator (A democracia Pós Imprensa e o Surgimento da Cidadania Comunicacional: O Bom Cidadão como Bom Comunicador), a ser publicado pela Cambridge University Press em data ainda não definida. 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.