Na última semana, um evento recente serviu como mais combustível para alimentar os necessários debates sobre liberdade de imprensa e assédio judicial enfrentado por jornalistas em todo o país. O motivo foi a definição da tese estabelecida pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que estipula a possibilidade de um veículo de imprensa ser responsabilizado pelas declarações de seus entrevistados se ou quando estas forem “informações comprovadamente injuriosas, difamantes, caluniosas, mentirosas”. Em outras palavras, essa decisão terá impacto em casos em andamento ou futuros, em instâncias inferiores da justiça em todo território nacional, estabelecendo um precedente a ser seguido por outros tribunais. O caso que deu origem à ação remonta à publicação de uma entrevista, em 1995, pelo jornal Diário de Pernambuco, na qual um entrevistado falsamente imputou crimes a outra pessoa.
O texto elaborado pelo ministro Alexandre de Moraes, com mudanças propostas por Luís Roberto Barroso, Cármen Lúcia e Cristiano Zanin, causa preocupação pela falta de clareza em torno de conceitos e critérios. Por exemplo, em trecho da tese fixada, é estabelecido que “a empresa jornalística somente poderá ser responsabilizada civilmente se: (i) à época da divulgação, havia indícios concretos da falsidade da imputação; e (ii) o veículo deixou de observar o dever de cuidado na verificação da veracidade dos fatos e na divulgação da existência de tais indícios”. Mas o que poderia ser considerado um indício concreto? Em quais circunstâncias exatamente a empresa jornalística poderá ser responsabilizada legalmente? E, ainda, como isso poderá ser comprovado?
Essa falta de clareza é motivo de preocupação, e não seria para menos, considerando que no Brasil mais de seis mil processos foram abertos contra jornalistas ou com solicitação de cerceamento de conteúdo jornalístico nos últimos 10 anos. A cautela exigida em relação à decisão e os questionamentos levantados por ela foram reverberados por diversas instituições ligadas ao jornalismo. Em nota assinada pela Fenaj, Repórteres Sem Fronteiras, Abraji, Ajor, Jeduca, Instituto Palavra Aberta e Instituto Vladimir Herzog, expressa-se o medo de que essa imprecisão possa “ampliar o cenário de censura e o assédio judicial contra jornalistas e comunicadores”.
Um novo caminho para o assédio judicial?
Este não é um alerta sem motivo. Com toda a imprecisão nos termos e a falta de clareza no estabelecimento da tese, abre-se margem para que arbitrariedades no julgamento de casos concretos passem a ser uma constante. A jornalista e diretora executiva da Agência Pública, Marina Amaral, exemplificou bem a preocupação: “Com o agravante de que juízes locais frequentemente estão envolvidos nos conflitos retratados nas reportagens, são corporativistas quando as denúncias atingem membros do judiciário, além de tenderem a beneficiar homens brancos, poderosos ou abastados. O recente caso da condenação da repórter Schirlei Alves está aí para comprovar os abusos da Justiça”.
O assédio judicial e a autocensura são apenas dois dos diversos tipos de cerceamento aos quais jornalistas e veículos de imprensa estão sujeitos. Ao se estabelecer a tese jurídica que os responsabiliza pela publicação de entrevistas nas quais são falsamente imputados crimes contra terceiros, há também o temor de que se abra mais um espaço para que indivíduos que se sintam ofendidos ou mencionados em conteúdos jornalísticos busquem processos judiciais de forma indiscriminada ou injusta. Isso também poderia levar a decisão de não divulgar determinada informação para evitar tal cenário.
É preciso destacar que isso não implica supor que profissionais e organizações não cometam erros ou até mesmo injustiças – é claro que o trabalho jornalístico precisa ser responsável, ético e cuidadoso em suas práticas. Trata-se, entretanto, de observar as limitações do trabalho jornalístico e pensar quem deve fazer a avaliação dessa responsabilidade.
Marina Amaral também reflete sobre isso: “[…] e as denúncias de mulheres estupradas, comunidades atacadas, trabalhadores que relatam atos ilícitos de empresas? Terão que provar o que dizem, o que inviabilizaria muitas denúncias, às vezes sem outras testemunhas? A imprensa não pode ser obrigada a seguir o rito dos inquéritos policiais e processos judiciais. Isso é com os operadores da Justiça. Claro que é obrigatório ouvir o outro lado e investigar ao máximo e o mais profundamente possível, além de publicar todas as informações apuradas. Mas quem vai avaliar se o trabalho jornalístico foi o suficiente ou se cumpriu “o dever de cuidado”? O juiz?”.
A decisão completa do caso julgado pelo STF, o chamado acórdão, ainda não tem data prevista para ocorrer, mas o que se espera é que os pontos que integram a decisão sejam esclarecidos e deixados mais bem delineados. É preciso levar em consideração o papel do jornalismo (ou dos jornalismos) na manutenção e fortalecimento da democracia e isso definitivamente não pode ser alcançado quando a liberdade de imprensa está em jogo.
Reportagem publicada originalmente em objETHOS.
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Kalianny Bezerra é Doutoranda no PPGJor/UFSC e pesquisadora do objETHOS