Friday, 20 de September de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1306

História e transformações do jornalismo automotivo são tema de livro do jornalista Sérgio Quintanilha

De objeto da técnica a objeto do desejo, o automóvel está entrelaçado na malha da vida cotidiana. Elemento central da organização do tempo e do espaço nas cidades, os carros atravessam o dia a dia e o imaginário público, com impactos que se desdobram na economia, na tecnologia e na cultura.

Para tratar da relação entre o jornalismo e as percepções a respeito do automóvel, o Observatório da Imprensa entrevistou o jornalista e pesquisador Sérgio Quintanilha. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP, Sérgio é, atualmente, editor do Guia do Carro no Portal Terra e no YouTube. Jornalista com longa trajetória na imprensa automotiva, é autor dos livros Revolução no Jornalismo Automotivo (2018) e O Gordini Mal Assombrado (2004). Seu livro mais recente, O Automóvel e Seus Sentidos Mutantes, resgata a história do jornalismo automotivo, apontando algumas das transformações na relação entre sociedade, automóvel e mobilidade.

Para começar, gostaria que o senhor explicasse como se dá o percurso, a trajetória do jornalismo automotivo como um campo específico.

Na verdade, o jornalismo automotivo começou cobrindo o automobilismo. Não havia uma especialização. Quando o automóvel surgiu, em 1886, criado por Karl Benz, na Alemanha, apareceram diversos fabricantes. Então, um jornal da França, o Le Petit Journal, de Paris, decidiu criar uma prova de competição, submetendo os automóveis de vários fabricantes a um percurso. Isso é interessante porque foi o jornalismo automotivo que criou o automobilismo. A partir disso, o jornalismo foi oferecendo ao público informações sobre os automóveis: o que eles realmente eram capazes de fazer em termos de alcance, quanto conseguiam rodar, sua potência, segurança. Depois, já na virada do século, surgiu na Inglaterra uma revista chamada Autocar. Ela existe até hoje e foi a primeira revista automotiva.

Ao longo do tempo, principalmente depois do Fordismo, quando o automóvel passa a ser produzido em série e se populariza, a indústria cria o jornalismo automotivo separado do automobilismo. O automobilismo de mercado, de indústria, e o de corridas meio que se separaram, embora existam, até hoje, veículos que tratam dos dois da mesma forma.

O jornalismo automotivo, embora se relacione com essa questão da indústria, também é um elemento de uma cultura enorme, a do esporte motor. E também isso vai se espraiando. O jornalismo automotivo vai dialogar com outras frentes, como política, economia, cultura. Como o senhor vê essas metamorfoses do jornalismo automotivo e dos sentidos do automóvel ao longo desse último século?

Essa é uma questão interessante, porque o jornalismo automotivo foi se especializando na questão técnica também. Então, ele passou a utilizar aparelhos de medição para conferir se os dados que os fabricantes colocavam eram realmente aqueles divulgados, fazendo teste de aceleração, de potência, principalmente de consumo e questões de segurança. Assim, o jornalismo automotivo, ao longo do tempo, tornou-se um parceiro do consumidor na cobrança do que a indústria oferecia. Ao mesmo tempo, a indústria automobilística passou a usar essa mídia automotiva como uma extensão do seu departamento de marketing. Então, é uma situação bastante complexa. Muitos jornalistas entram nesse setor porque têm paixão pelo automóvel. E o fato de você ter paixão por um produto, às vezes, tira a parte crítica. Não quero dizer que não exista crítica no jornalismo automotivo, pelo contrário. Acho até que é bastante crítico e consegue incomodar bastante as montadoras, na medida em que divulga os segredos do que acontece nas fábricas e também checa aquilo que é colocado para o consumidor, fazendo testes comparativos e tal.

Só que, ao longo do tempo, o que foi acontecendo? Por um lado, o jornalismo foi se tornando mais técnico. Por outro, a imprensa, a mídia, a comunicação, o jornalismo foram se tornando também mais acelerados. E isso resultou num jornalismo apressado. Existe tanta coisa para ser noticiada que se perdeu um pouco a questão técnica. Simplesmente não dá tempo de se aprofundar em determinada análise para ver se um carro é realmente aquilo tudo que a montadora disse. Porque há tantas outras coisas sendo dadas, e o público também tem interesse nessas notícias mais rápidas — e quanto mais técnico o conteúdo, menos audiência dá. Hoje, vejo que o jornalismo automotivo é muito mais um braço de marketing das montadoras do que, às vezes, um aliado do consumidor. Ele ainda precisa fortalecer esse lado.

Recentemente, tem sido mapeado que as novas gerações parecem sentir menos interesse em possuir automóveis do que as gerações passadas. Você vê algum impacto desse recorte geracional no modo como o jornalismo automotivo atual tem funcionado?

Muitas montadoras estão oferecendo assinatura de carro. É muito mais o carro como uma experiência do que como posse. Antigamente, a pessoa chegava a um bar e o status dela era exibido de que forma? Com a chave do carro. Colocava a chave em cima da mesa, dependendo da marca que estivesse ali. Hoje, é muito mais o smartphone. Essa é uma coisa que ainda está começando, principalmente no Brasil. Não serve para todo mundo, tem que se fazer as contas para ver se é viável. É daqueles assunto que o jornalista considera tema chato; ninguém gosta muito de falar nisso, até porque o público também não tem muito interesse. O jornalismo automotivo hoje ainda é muito focado na máquina. Para que ele seja mais focado na sociedade, primeiro terá que acontecer esse movimento de as pessoas, realmente o grande público, talvez a geração que hoje é mais jovem, chegarem à etapa em que vão consumir carros. Porque chega um momento em que as pessoas acabam tendo necessidade de um carro: alguém casou, teve um filho, outro filho, e aí o carro se torna mais prático do que usar transporte público. Quando essas pessoas forem a grande massa de consumidores, aí sim vamos ver se o jornalismo automotivo estará atendendo a esse público ou se ele vai estar preso num conceito do passado, só da máquina, como fascínio.

A respeito disso, queria te perguntar sobre o grande cenário. Porque temos mudanças no modo como os automóveis são entendidos por gerações diferentes, além das transformações técnicas, da indústria. E há também mudanças bastante radicais que têm acontecido no mercado da comunicação, no mercado de notícias. Existe uma diminuição da tiragem dos veículos impressos, e a expansão da internet como meio preferencial de acesso às informações. Como o senhor vê a imprensa automotiva no Brasil quanto a volume, tiragem, redações? Há algum impacto nas últimas décadas para cá?

Sim. Vamos considerar só de 1960 para cá, que é quando surgiu a Quatro Rodas. Logo em seguida, surgiu também a revista Autosport. E depois surgiu a Mecânica Popular e também o Jornal do Carro, junto com o Jornal da Tarde – hoje, o Jornal do Carro é um suplemento do Estadão. Ao longo desse tempo, os veículos impressos eram muito mais importantes. Por incrível que pareça, a televisão e o rádio tinham menos importância para as montadoras, e até para os consumidores, do que as revistas e jornais.

Os jornais tinham suplementos sempre numa quarta-feira, ou num sábado, ou num domingo. Era uma notícia por dia, um suplemento por semana. As revistas eram as grandes queridinhas da indústria, no mundo inteiro. Trabalhei durante muitos anos em revista, e era impressionante a quantidade de viagens internacionais que a gente fazia. Você não dava conta. E as redações eram grandes, tinham 35 pessoas, 20 pessoas, 15 pessoas. Isso foi mudando. Quando surgiu a internet, apareceu uma onda de sites especializados, mas esses sites não deram conta, não conseguiram se transformar em negócio. Muitos deles morreram. Depois, em 2004, mais ou menos, quando começou a chamada Web 2.0, a parte mais colaborativa, de compartilhamento, em que o leitor pode contestar o jornalista dentro da própria matéria, isso modificou. Então, o automóvel começou a ganhar espaço nos grandes portais.

Hoje, não há um dia em que você não tenha uma notícia, ou mais, sobre automóvel em um grande portal. No Terra, no UOL, no G1, sempre tem uma notícia. Esse processo de perda da importância dos impressos levou um tempo, mas a grande virada aconteceu no final de 2008, começo de 2009, quando houve a queda do banco Lehman Brothers, nos Estados Unidos. Ali foi um momento em que toda a mídia automotiva, aliás, a mídia impressa, deu uma segurada. Em 2009, praticamente não houve anúncio nas revistas. E, por incrível que pareça — ou melhor, para azar, digamos assim, das mídias impressas —, nunca se vendeu tanto carro. As vendas de automóveis subiram. Então, foi aí que elas abandonaram a mídia impressa, de vez. Ainda existiu uma sustentação até mais ou menos 2013, 2014. E então, a partir de 2015, acabou. Porque os jornalistas se tornaram mais importantes do que os veículos.

Jornalistas que faziam parte da mídia impressa foram para o YouTube, principalmente, ou Instagram. Tem jornalistas com visualização de meio milhão em vídeos no TikTok. Vários jornalistas têm centenas de milhares de assinantes, de espectadores no YouTube. Isso é, às vezes, mais do que os próprios veículos. Hoje, não existem mais redações grandes. A poderosa Quatro Rodas, por exemplo, não tem mais redação. Hoje ela é feita em casa. Imagina, eu trabalhei lá, e havia 35 pessoas na redação. Hoje, cada um está no seu quadradinho, na sua casa, fazendo home office, e ninguém se conversa. É uma mudança muito radical. O jornalismo automotivo foi meio um exemplo de tudo que aconteceu na mídia, não só nesse setor, mas em todos. O jornalista que, hoje, tem acesso à informação e sabe explorar vídeos ou lives e tem credibilidade, faz crítica, tem mais chances de se dar bem. Apesar de muitos ouvintes ou espectadores preferirem um jornalismo, digamos assim, acrítico, mais conteudista. Hoje, o leitor, o consumidor, o espectador quer ter a opinião dele. Então, se ele se depara com um jornalista de opinião muito forte, ele já é contra. Muita gente percebeu isso e está fazendo um jornalismo mais, diria, descritivo do que opinativo.

Serviço:

O automóvel e seus sentidos mutantes

Autor: Sérgio Quintanilha

324 páginas

Fontenele Publicações

Link:

https://www.editorafontenele.com.br/loja-comprar-livro/O-AUTOMOVEL-E-SEUS-SENTIDOS-MUTANTES-Jornalismo/62094048/livraria

Essa é a versão editada de entrevista originalmente publicada no podcast Jornalismo, Direito e Liberdade (disponível no Spotify):

https://open.spotify.com/show/6kYRjpYoKrL6zlN9avymoF

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Tiago C. Soares é jornalista e doutor em História Econômica pela USP. É integrante do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA/USP), e pesquisador bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).