Prestígio, indicação e contatos próximos. Esses são os três principais critérios utilizados por jornalistas para a escolha dos especialistas que servirão de fonte de informação em suas reportagens. A conclusão é do projeto “Percepção de jornalistas e de cientistas sobre a divulgação científica”, elaborado pela Agência Bori.
A pesquisa foi enviada para 1.483 profissionais de comunicação cadastrados na agência entre outubro e novembro de 2021, com convite para entrevistas individuais e anônimas por meio de formulários online. Foram obtidas respostas de 166 jornalistas, além da participação de cientistas que responderam a questões ligadas ao relacionamento com a imprensa.
A porcentagem de participantes autodeclarados pretos e pardos (6,6% e 19,3% respectivamente) é similar ao total de negros nas redações, segundo o Perfil Racial da Imprensa Brasileira e IBGE de 2019 (6,9% e 13,2%). O número de autodeclarados brancos (69,9%) não difere drasticamente da representação do mesmo grupo nas salas de notícia (77,6%). Pode-se, portanto, considerar a mostra como um microcosmo próximo à realidade dos meios de comunicação brasileiro.
Em relação ao gênero, 60% dos respondentes são do sexo feminino e 40% do sexo masculino. Ao se tratar da área de cobertura, 30% dos jornalistas responderam que cobrem principalmente a área da Saúde, seguido de Ciência e Ambiente, com 1 6% e14% de respostas, respectivamente.
O parâmetro mais importante para eleger uma fonte jornalística, apontado na pesquisa, é o fato do especialista ser renomado no meio acadêmico – 21,8% das respostas ao questionamento sobre critérios de escolha de entrevistados. Referências sugeridas por amigos e colegas de profissão ocupam o segundo lugar, com 16,7% das respostas, seguido da opção “especialistas que já conhece ou tem contato”, com 15,8%.
A importância do quesito cor só perdeu em rejeição para as alternativas “Não se aplica” e “Diversificar fontes”, ambos com 2,5% e “Destaque na Imprensa”, com 1,3%. Disponibilidade do especialista (12,6%), Região (9,8%), Gênero (8,5%) e Indicação da Assessoria (5,4%) também foram mencionados.
Ao interseccionalizar cor e gênero, dois quesitos com baixa predileção entre os participantes, a probabilidade de uma mulher negra ser ouvida como fonte torna-se ainda mais baixa. Esse é um dos grupos com menor representatividade nas redações, perdendo somente para pessoas de ascendência asiática e indígena.
De acordo com a pesquisa Jornalismo Brasileiro: raça e gênero de quem escreve nos principais jornais do país, realizada pelo Grupo de Estudos Multidisciplinares da Ação Afirmativa (Gemaa) de 2021, nas três principais redações de jornais do Brasil a quantidade de mulheres negras jornalistas é de 3%, 5% e 6%, correspondendo a, respectivamente, Estadão, Folha de São Paulo e O Globo. Portanto, ainda que profissionais negras ouvissem exclusivamente especialistas do seu mesmo grupo étnico-racial, não seria suficiente para mudar a voz ecoada nas reportagens de maior circulação no Brasil.
E, mais do que permitir que essas mulheres falem e sejam ouvidas, é importante que suas colocações não sejam estereotipadas e reduzidas a vieses preconceituosos, como alerta Bruna Rocha, co-idealizadora da plataforma Semiótica Antirracista. A pesquisadora fala em seus estudos, por exemplo, sobre as problemáticas da editoria policial, que usa palavras e julgamento diferentes para o mesmo caso de drogas quando acontece com uma pessoa negra e com uma branca. O questionamento é: uma fonte negra teria o mesmo olhar sobre tais casos? Como saber sem tê-las?
Trata-se, portanto, não somente de quem escreve, mas quem é considerado importante para validar informações noticiadas e como esse texto será desenvolvido.
Ineditismo
A abordagem da Agência Bori é inédita, pois tratam de analisar não os resultados de tais escolhas, mas de evidenciar os processos de como se dá a decisão de quem terá a voz ouvida e replicada. Isoladamente, os números revelados na pesquisa não representam uma ruptura ao princípio básico do jornalismo da imparcialidade. Porém, ao observar o cenário no qual as redações brasileiras estão inseridas, ou seja, em uma sociedade onde opera a iniquidade, mostra-se alarmante o fato de que pessoas brancas estão elegendo pessoas brancas para ganharem destaque. Isso porque sendo prestígio no meio acadêmico o principal requisito para escolha de uma fonte e tendo o mesmo ambiente um número desigual de pessoas brancas e não brancas, conclui-se que assim como os jornalistas são em sua maioria branca, o mesmo vale para suas fontes.
De acordo com informações publicadas na Agência Brasil, na Universidade de Brasília (UnB), pioneira na adoção de cotas raciais no país, mesmo tendo havido significativa mudança na quantidade de pessoas negras que ingressaram no mestrado ou doutorado depois das cotas, os números ainda apontam para desigualdade estrutural na proporção de negros e brancos. Em 2004, foram 39 brancos e 16 negros. Em 2017, o número passou para 884 brancos e 671 negros.
Será necessária outra pesquisa para averiguar a razão pela qual os participantes não julgam a cor como sendo um fator relevante. No entanto, em estudos como os realizados pela pesquisadora Cida Bento no documento Pactos Narcísicos da Branquitude, é possível encontrar pistas que justifiquem tal comportamento. Na tese da especialista em discussões de gênero, raça e classe, Cida Bento fala sobre a reprodução das desigualdades raciais nas relações de trabalho no interior das organizações.
O texto traz exemplos sobre a proporção de pessoas brancas em cargo de poder comparada à quantidade de gestores e líderes negros e as insuficientes ações corporativas para alteração desse cenário. Segundo o material, pessoas brancas raramente percebem o negro em seu universo de trabalho, o que justificaria a irrelevância do quesito cor para os jornalistas entrevistados. Nomeado como Pacto Narcísico, termo usado de inspiração para o título deste presente artigo, o fenômeno acontece quando a omissão e o silêncio pautam as ações de pessoas brancas movidas pelo medo da perda de privilégios que seu lugar na sociedade lhes oferece.
O fato de que a segunda predileção de fontes se dá por indicação e em terceiro lugar por pessoas que fazem parte da rede de contato são exemplos irrefutáveis de que existe, como teoriza Cida Bento, uma preservação de hierarquias raciais. “Sou branco, meus colegas de trabalho são brancos e as indicações recebidas, assim como minha própria rede de contatos também”, é como poderia ser resumido o círculo vicioso que exclui sistematicamente pessoas negras dos holofotes midiáticos.
Esse pensamento é rotineiramente posto à prova em defesas tais como: “Mas eu não sou racista”. Pensando em evidenciar o preconceito subconsciente que norteia grande parte de nossas decisões, a Universidade de Harvard criou o teste de associação implícita (IAT), com o intuito de averiguar, estudar e criar teses sobre visões que alimentamos sem que isso esteja operando de forma consciente e que influenciam nas nossas predileções, julgamentos e ações diante de grupos de pessoas racializadas, obesas e com deficiência, para listar algumas das categorias do teste.
O formulário foi realizado mais de 18 milhões de vezes e teve nos testes de raça resultados que mostram inclinação a favor de brancos em detrimento de negros. O teste possui críticas quanto à replicabilidade, uma vez que uma mesma pessoa pode apresentar resultados diferentes realizando o teste em momentos distintos. Outro ponto de questionamento é o fato de que se alguém teve uma pontuação forte no quesito de preconceito não significa que ela agirá de forma mais preconceituosa que alguém que se saiu melhor na avaliação.
Ainda assim, o teste traz para o plano consciente vieses que norteiam decisões, como defende Júlio Cesar Santos, diretor do Instituto Luiz Gama, sobre os mecanismos de preconceito, baseados em experiências pessoais, crenças e referências obtidas de fontes nem sempre imparciais. Esse foi o tema da conversa do profissional em entrevista à CNN, onde discursa sobre o fato de que sem a discussão de como surgem e de que se alimentam essas suposições o racismo estrutural se manterá intacto.
O que está sendo feito
Tanto os critérios mais adotados pelos jornalistas para escolha de uma fonte quanto aqueles que não foram considerados importantes trazem marcantes percepções sobre os processos que resultam em reportagens cuja diversidade de fontes não representa a população, mas sim o próprio ambiente das redações.
A aposta para um jornalismo antirracista não pode se reduzir àquela praticada por veículos cujos propósitos têm como alicerces reportagens feitas por e sobre pessoas negras. Dentro desta categoria, destacam-se Alma Preta, Ponte Jornalismo, Notícia Preta, Revista Afirmativa, Geledés, Correio Nagô e Negrê, pelo atento olhar às intersecções de raça, gênero e classe e na forma de reportar notícias que levem tais marcadores sociais em consideração para um contexto fiel dos fatos.
Ainda que expressivos, a chamada mídia negra não atinge as massas com a mesma força dos meios de comunicação tradicionais, fazendo urgente a revisão dos ambientes jornalísticos. Tal mudança passa pela contratação de mais profissionais não-brancos, bem como incentivo a jovens para que cursem áreas do saber que possibilitem essa inserção, além de adoção de ações afirmativas dirigidas à contratação e retenção desses talentos.
Outro ponto crucial é a contestação do pensamento de que profissionais negros são difíceis de encontrar. Para refutar essa ideia e promover um jornalismo antirracista, iniciativas vêm sendo desenvolvidas como o projeto “Entreviste um negro”, de 2015, idealizado pela jornalista Helaine Martins em parceria com o site Mundo Negro e mantido postumamente sob apoio da Editora MOL, no perfil do Instagram @entrevisteumnegro.
A ativista morreu em 2021, aos 41 anos, após sofrer uma parada cardiorrespiratória e tornou-se, ela mesma, a inspiração e referência para grandes portais de notícias negras que repercutiram a perda que sua morte precoce representava para o jornalismo. O projeto está suspenso, mas segundo informações da editora MOL, a previsão é de retomada na segunda metade de 2022.
Por enquanto é possível ter acesso ao banco de dados e suas 49 indicações de especialistas de diferentes áreas do saber, todas ligadas ao ambiente acadêmico, a partir de um documento com objetivo similar. Trata-se do Jornalismo Antirracista, criação das jornalistas Marília Marasciulo, de Florianópolis (SC), e Luísa Martins, de Pelotas (RS).
Desenvolvido em 2020, em meios à cobertura do assassinato de George Floyd, o banco de dados surgiu quando Marilia foi alertada pelo historiador Lourenço Cardoso da problemática de acionar pessoas negras somente para falar de racismo. Diante da provocação, a jornalista se uniu à colega de profissão e juntas criaram um banco de dados com fontes negras, que permite ainda acesso direto ao Entreviste um Negro. O objetivo era encurtar a distância entre jornalistas e pessoas pretas e pardas. Segundo as idealizadoras, a lista conta com 203 fontes cadastradas e é acessada (mediante autorização que comprove conexão com jornalismo) por cerca de 500 pessoas. Marilia afirma ter se surpreendido com a repercussão da mídia quanto sua iniciativa que, acredita, tenha recebido mais destaque que o Entreviste um Negro, exemplificando que, até para obter indicações de pessoas negras, jornalistas consultam pessoas brancas.
Iniciativas conjuntas, decisão individual
Todas essas ações, porém, passam pelo processo pessoal e intransferível de admitir a responsabilidade individual pela equidade dentro e fora do jornalismo. Deve-se considerar a importância do equilíbrio de fontes diversas adotando critérios múltiplos que vão além de cor e gênero, mas passam por região, formação e relevância do especialista dentro dos quesitos de diversidade e inclusão. Do contrário, o jornalismo não apenas não será antirracista, como se manterá racista tal qual é hoje.
A partir de iniciativas como os bancos de fontes e estudos, a exemplo deste realizado pela Agência Bori, espera-se trazer à discussão maneiras de institucionalizar o processo de escolha de fontes. O objetivo é que, muito além de uma decisão pessoal, os critérios para eleição dos especialistas seja um reflexo do meio de comunicação no qual o jornalista está inserido e uma forma de manifestar publicamente qual o posicionamento de ambos, comunicador e veículo, na luta por um jornalismo plural.
Referências bibliográficas
https://revistagalileu.globo.com/Revista/noticia/2015/10/voce-e-racista-so-nao-sabe disso-ainda.html
https://implicit.harvard.edu/implicit/brazil/takeatest.html
https://repositorio.usp.br/item/001310352
https://www.poder360.com.br/brasil/so-20-dos-jornalistas-sao-negros-nas-redacoes brasileiras/
https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/expressaextensao/article/view/21052
https://www.poder360.com.br/brasil/so-20-dos-jornalistas-sao-negros-nas-redacoes brasileiras/
https://perfildojornalista.ufsc.br/
Notas
O texto foi escrito a convite da Rede Brasileira de Jornalistas e Comunicadores de Ciência (RedeComCiência) e é resultado da disciplina ‘Jornalismo Científico’, ministrada pela professora doutora Sabine Righetti no Programa de Mestrado em Divulgação Científica e Cultural MDCC, do Labjor-Unicamp.
A RedeComCiência é uma associação apartidária e sem fins lucrativos, criada em fevereiro de 2018, para reunir profissionais interessados em discutir, amplificar, viabilizar e melhorar o jornalismo e a comunicação de ciência no Brasil. Ela é formada por profissionais das áreas da comunicação, divulgadores científicos e cientistas de todo o Brasil.
***
Monique dos Anjos é jornalista (Universidade Anhembi Morumbi) e mestre em Divulgação Cultural e Científica com uma pesquisa gênero, raça e o impacto dessa intersecção dentro dos ambientes digitais das redes sociais (Labjor-Unicamp). Trabalha como consultora antirracista para terceiro setor, instituições de ensino e corporações privadas. Ela pode ser contatada pelo e-mail moniquedosanjos@yahoo.com.br ou através das redes https://www.linkedin.com/in/moniquedosanjos/ e https://www.instagram.com/moniquequedisse