No último 7 de maio, a reportagem “(RS) pede ajuda, Uruguai oferece lanchas, avião e drones, mas governo Lula dispensa”, publicada na Folha de S. Paulo, gerou grande repercussão nas redes sociais e em grupos bolsonaristas. A matéria aborda a oferta de um avião pelo governo uruguaio para auxiliar nos resgates das vítimas das enchentes no Rio Grande do Sul, que não pôde operar no Brasil devido a problemas logísticos, conforme reportado pelo Valor Econômico.
O título da Folha circulou rapidamente em grupos e influenciadores de extrema-direita, no contexto de uma onda de fake news sobre o trabalho de governos e órgãos públicos nas enchentes. Nestes mesmos grupos, também eram disseminadas mensagens de ódio contra a imprensa e jornalistas.
Grupos progressistas também criticaram a Folha, acusando o veículo de mentir e divulgar notícias falsas. No dia seguinte (8), a Secretaria de Comunicação Social do Governo Federal emitiu uma nota afirmando que não houve recusa da oferta uruguaia, explicando a situação sem mencionar diretamente a Folha.
O que sabemos é que o governo do Uruguai ofereceu um helicóptero de resgate e um avião de transporte Lockheed KC-130H Hercules, carregado com lanchas e drones, para auxiliar nas buscas. O Comando Militar (CM) conjunto, uma parceria entre o CM do Sul e o Ministério da Defesa, declinou a oferta do avião devido à incapacidade das pistas de pouso em Porto Alegre de receberem o veículo. Já o helicóptero foi recebido e está em operação.
Outro avião, com maior capacidade de carga, semelhante ao oferecido e pertencente ao Brasil, também segue em operação*.
O texto da Folha assume o ponto de vista de José Henrique Medeiros Pires, secretário-executivo do governo do RS, e apresenta suas críticas ao longo da linha fina e dos seis primeiros parágrafos. Apenas no sétimo parágrafo são apresentados trechos de notas oficiais do Governo Federal sobre o ocorrido. Não houve apuração além de citar falas oficiais.
Já o título da matéria condensa e interpreta as falas do secretário, relacionando uma suposta acusação contra o Ministério da Defesa ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, criando apelo emocional a partir de uma informação não checada.
Títulos voltados para aumentar o alcance das publicações nas redes sociais são prática comum em redações que trabalham com metas de cliques. Eventualmente, a perspectiva de aumentar o engajamento é o fator que orienta a construção do título, e não o interesse público e a fidelidade ao fato.
A forma como o público se relaciona com a notícia deve ser levada em consideração ao estruturar um texto. Apenas 41% das notícias compartilhadas são lidas por aqueles que as compartilham. Dependendo do tema e da rede social, esse número pode cair para 7%. Já aqueles 41% de leitores leem, em média, apenas 20% do conteúdo escrito. Para tornar o cenário mais complexo, a parcela que compartilha sem ler tende a acreditar que entendeu a notícia lendo apenas o título.
No jornalismo digital, títulos e lides não são apenas a chamada, muitas vezes eles serão lidos como se fossem toda a notícia. Portanto, é importante que esta parte do texto seja escrita considerando o interesse público e o factual, assim como o lide e os primeiros parágrafos.
Como é ensinado em cursos de jornalismo, “interesse do público” é diferente de “interesse público”. O papel do jornalismo é selecionar e verificar informações de interesse público, e não se basear no que mais apela ao emocional dos leitores e gera maior engajamento.
Quando uma denúncia é feita sem apresentar provas, ela deve ser apurada antes de ser replicada. Se o objetivo do texto da Folha era questionar a resposta dada pelos representantes do governo, então era necessário apurar com outros representantes, especialistas e técnicos para checar as falas de ambos os lados, o que não aconteceu.
Não cabe ao jornalismo assumir um posicionamento sobre um fato que não foi devidamente apurado, ainda que o erro esteja apenas no título. Se um título pode ser mal interpretado a ponto de ser confundido com uma fake news, ele precisa ser corrigido.
Por ter pouco interesse público, a cobertura do ocorrido parou por aí. No debate público, entretanto, a notícia seguiu circulando por dias alimentando discursos de ódio contra equipes de resgate, órgãos públicos e a imprensa.
No último dia 12, o repórter Eduardo Paganella, da RBS, afiliada da TV Globo no RS, chegou a ser atacado durante uma entrada ao vivo, sendo obrigado a interromper a transmissão. Nas redes sociais, influenciadores e políticos de extrema-direita promovem uma série de ataques contra o trabalho de jornalistas. No último dia 10 de maio, o ex-deputado federal Deltan Dallagnol incitou seus seguidores a atacarem o jornalista Guga Noblat, no X (antigo Twitter).
O texto da Folha acabou servindo para a extrema-direita promover discurso de ódio contra Lula, órgãos públicos e jornalistas. No campo progressista, foi utilizado para acusar veículos como a Folha de publicarem mentiras. Desacreditar o jornalismo foi a única unanimidade. Na prática, o título click bait pouco informou, mas serviu principalmente para alimentar a máquina da intolerância contra jornalistas e imprensa.
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*As informações foram retiradas de notas oficiais e de veículos jornalísticos, incluindo a Folha.
Pesquisas citadas:
DYKES, Taylor. Rewriting Digital Content for Brevity. Nielsen Norman Group. Acesso em: https://www.nngroup.com/articles/rewriting-content-brevity/
ANSPACH, Nicolas M. A little bit of knowledge: Facebook’s News Feed and self-perceptions of knowledge. Acesso em: https://journals.sagepub.com/doi/10.1177/2053168018816189
DEWEY, Caitlin. 6 in 10 of you will share this link without reading it, study says. Washington Post. 2016. Acesso em: https://www.washingtonpost.com/news/the-intersect/wp/2016/06/16/six-in-10-of-you-will-share-this-link-without-reading-it-according-to-a-new-and-depressing-study/
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Mariane Roccelo é jornalista e doutoranda em Comunicação na Escola de Comunicações e Artes da USP. Pesquisadora no Grupo de Pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL), com foco em Democracia e Internet.