A Constituição brasileira em vigor, promulgada no dia 5 de outubro de 1988, veicula um conjunto de exonerações tributárias conhecidas como “imunidades”. Em linhas gerais, em um caso de imunidade tributária existe uma ordem dirigida ao legislador para não inserir na mecânica ou no raio de abrangência da tributação as pessoas ou bens imunizados. A preservação de certos valores, especialmente caros ao convívio social, é o fundamento das imunidades, inclusive tributárias. Com efeito, não interessou ao constituinte dificultar ou onerar certas atividades ou pessoas, dado o relevante papel desempenhado pelas mesmas no contexto social.
Uma das imunidades tributárias mais tradicionais é a religiosa. Na sua versão original, vedava-se aos entes estatais instituírem impostos sobre o patrimônio, a renda e os serviços relacionados com as finalidades essenciais das entidades mantenedoras de templos de qualquer culto.
Por força de interpretação do texto constitucional e da redação do parágrafo quarto do art. 150, onde estava (e está) presente o termo “entidade”, entendia-se que a imunidade se dirige ao ente religioso, e não ao prédio ou edificação pura e simplesmente. O Supremo Tribunal Federal (STF) chancelou essa inteligência ao julgar o Recurso Extraordinário (RE) n. 578.562.
Recentemente, a Reforma Tributária da Emenda Constitucional n. 132, de 2023, consolidou e ampliou a interpretação anteriormente destacada. Agora, a Constituição proíbe a instituição de impostos “sobre entidades religiosas e templos de qualquer culto, inclusive suas organizações assistenciais e beneficentes”.
Não obstante a aludida ampliação da imunidade tributária, permanecem em tramitação, com avanços legislativos contínuos, propostas de emendas à Constituição (PECs) buscando alargar ainda mais a imunidade religiosa. Nessa linha, em fevereiro de 2024, foi aprovada na Comissão Especial da Câmara dos Deputados a PEC n. 5, de 2023.
A referida PEC n. 5/2023 pretende inserir um dispositivo na Constituição afirmando que a imunidade religiosa “… compreende a aquisição dos bens ou serviços necessários à formação do patrimônio, à geração de renda e à prestação de serviços, inclusive à implantação, manutenção e funcionamento das entidades religiosas de qualquer culto e de suas creches, asilos, orfanatos, comunidades terapêuticas, monastérios, seminários e conventos, dentre outras, atendidas as condições estabelecidas em lei complementar, que deverá prever a obrigatoriedade de regras unificadas e harmônicas nacionalmente”.
São particularmente estranhas, para ficar no eufemismo, as expressões “formação do patrimônio”, “geração de renda” e “prestação de serviços”. A sensação da institucionalização de um forte viés econômico no âmbito das atividades religiosas é inafastável. Inúmeras perguntas “constrangedoras” podem ser imaginadas a partir da redação do dispositivo aludido. Uma dessas indagações: a compra ou locação de veículos ou imóveis de luxo para atender as inúmeras lideranças religiosas, dispostas em uma interminável hierarquia clerical, estaria livre de tributação?
Exatamente em função da proposição aprovada, o jornal O Estado de São Paulo afirmou de maneira incisiva: “Avanço da PEC que amplia imunidade tributária para templos, inclusive com apoio do governo, mostra o crescente poder dos donos de igrejas, que fazem da fé um ativo para barganha política” (fonte: estadao.com.br).
O Estadão destaca uma das duas grandes vertentes do enorme avanço, no Brasil, de uma série de igrejas evangélicas alimentadas por uma “teologia” agressiva fundada em uma suposta necessidade de financiar a luta do bem contra o mal. Os agentes desse financiamento são milhões de brasileiros empobrecidos e facilmente enredados em pregações recheadas de combates a demônios, curas milagrosas e promessas de prosperidade material diretamente proporcionais aos dízimos e outras contribuições ofertadas. Os destinatários desses suados valores, recolhidos sem o menor pudor, são lideranças religiosas (pastores, bispos, missionários, apóstolos etc) com patrimônios e estilos de vida cada vez mais suntuosos.
A outra vertente do avanço dessa “religiosidade distorcida”, não destacada pelo Estadão, é o crescimento de um certo conservadorismo extremamente perigoso. Busca-se um absurdo fundamento espiritual, até diretamente na figura divina (do criador do universo), para justificar uma postura ativa e agressiva contra valores especialmente relevantes no convívio civilizado. Aposta-se, entre outras deturpações, no autoritarismo, em uma visão reducionista da realidade e na imposição de padrões de costumes para toda a sociedade. Existem claras tentativas de interferir indevidamente na liberdade individual com a edição de comandos legais consagradores de supostas definições comportamentais decorrentes de “textos sagrados”.
Registre-se, para afastar qualquer equívoco de compreensão dessas ponderações, que o legítimo pensamento conservador merece todo respeito e consideração no debate político e filosófico. Os (verdadeiros) liberais, por exemplo, prestigiam as instituições (em especial os instrumentos da democracia representativa), os mecanismos de controle do poder político e o respeito aos direitos dos vários segmentos sociais, especialmente das minorias (sociológicas).
Infelizmente, ganharam protagonismo no Brasil e no mundo, inclusive pelos fortes laços com a aludida “religiosidade distorcida”, importantes segmentos das direitas antidemocráticas (chamadas pela imprensa e no cotidiano da política, sem rigor técnico ou científico, de extrema-direita ou fascismo). Esses setores buscam: a) a superação ou significativa mitigação do ambiente democrático, notadamente com ataques frequentes e sistemáticos às instituições estatais; b) a militarização da vida social, incluindo apologia ao uso de armas; c) a disseminação organizada e massiva de notícias falsas (fake news) e d) a propagação do discurso de ódio, intolerante com a pluralidade e os direitos das minorias (sociológicas, mais uma vez).
Destaque-se que recentemente uma decisão da Receita Federal acendeu a discussão com esses segmentos da “religiosidade distorcida”. Com efeito, às vésperas da campanha eleitoral de 2022, o Fisco entendeu que não incidia contribuição previdenciária sobre as prebendas, forma de remuneração paga por igrejas a seus pastores, ministros e outras lideranças religiosas. No dia 17 de janeiro de 2024, nova manifestação da Receita sobre o assunto reconheceu como devido e necessário o recolhimento do referido tributo previdenciário. Na sequência, a imprensa registrou fortes reações de dirigentes de várias igrejas que qualificaram a medida como: “afronta aos religiosos”, “afronta às religiões”, “perseguição religiosa”, “vingança”, “sacerdofobia” e “safadeza de Lula”.
O desenvolvimento do Brasil com sustentabilidade, justiça social, democracia, supressão de discriminações e opressões exige uma cidadania ativa atenta, organizada e mobilizada para manter não só a laicidade do Estado. É preciso, como mostram os movimentos legislativos e não legislativos destacados, combater: a) a transformação das religiões em negócios; b) a utilização da representação política para obtenção de toda sorte de vantagens indevidas com uso das religiões e c) as absurdas tentativas de pautar condutas e comportamentos do conjunto da sociedade por dogmas, literalismos e fundamentalismos inspirados equivocadamente em “textos sagrados”.
Eclesiastes 5:10: “Quem ama o dinheiro jamais terá o suficiente. Quem ama as riquezas jamais ficará satisfeito”.
Gálatas 3:28: “Dessarte, não pode haver judeu nem grego; nem escravo nem liberto; nem homem nem mulher; porque todos vós sois um em Cristo Jesus”.
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Aldemario Araujo Castro é advogado, mestre em Direito, Procurador da Fazenda Nacional